Estávamos a 5.100m de altitude, rumo ao acampamento alto do Ausangate. Escolho três bonitas folhas de coca e as acomodo delicadamente, formando um trevo, o qual aproximo dos meus lábios e, após soprá-lo longamente, digo com devoção: “Apu Ausangate, deixa-nos passar”.

Cada um dos membros da expedição realiza o “pagapuy”, ritual de respeito à montanha sagrada, depois doces, dinheiro, folhas de coca, lã de vicunha, vinho e outras oferendas, ardem em uma grande fogueira, enquanto silenciosamente tentamos entrar em equilíbrio com a imensidão da montanha que iremos enfrentar.

Dias antes havia participado de outra manifestação da Fé do povo andino, fazendo parte da peregrinação de Qoyllur Ritti (“neve de estrelas” em quéchua). O grande santuário, que reúne mais de 50 mil pessoas, existe em frente ao Ausangate, no lado oposto da Interoceânica, de onde se parte dos 4.000m de altitude para caminhar 8Km até uma ampla esplanada a 4.600m, onde acredita-se que em 1780 o Menino Jesus teria aparecido a um menino pastor de alpacas e lhamas.

A cerimônia é emocionante, um grande sincretismo entre as crenças andinas mais antigas e o catolicismo. Há mais de 20 anos o lugar era rodeado por glaciares, onde os peregrinos recolhiam pedaços de gelo que acreditavam terem propriedades medicinais, alguns levavam esses pedaços de gelo até a Catedral em Cusco. Atualmente o glaciar se encontra acima dos 5.300m em razão da retração provocada pelo aquecimento global, e é proibido a sua retirada.

Quando cheguei no acampamento alto (5.500m) estava emocionado, minha peregrinação ao Ausangate havia começado quando o vi pela primeira vez, em 1985, e estava prestes a chegar ao seu final. Às 23h30 começamos a escalada, o americano Nathan Heald, os peruanos Luis Crispin e Edwin Espinoza e eu, cada um desempenhando o papel de guia, levando em sua corda dois clientes.

A princípio fui na frente, com dois americanos em minha cordada, até os 5.700m, onde se tem início uma parede de gelo de 200m de altura. Nathan assumiu a liderança, pois já conhecia o caminho, mesmo assim levamos mais de quatro horas para superar a parte mais vertical da Parede Nordeste, que chega a ter 55o de inclinação, em razão da falta de experiência dos clientes.

Após superarmos a Parede Nordeste, entramos na grande rampa de neve que existe na Face Sul do Ausangate.

Apesar da dose de adrenalina que sentiram na parede, e do frio de -13oC, os clientes foram recobrando o ânimo com o amanhecer, mas as dificuldades continuaram. Mesmo com inclinação suave, algo em torno de 30o, enfrentamos 2Km em um terreno traiçoeiro, onde nos afundávamos na neve até o joelho, em um verdadeiro exemplo de trabalho em equipe, onde íamos nos revezando na dianteira.

Por volta das 10 horas da manhã alcançamos a crista do cume, e nos assustamos com o abismo de mais de dois mil metros que despenca sobre a Face Norte. Exaustos, os clientes acabaram se contentando em ficar ali mesmo, contemplando uma fantástica vista a 20m abaixo do cume. Nathan, Luis, Edwin e eu não resistimos, fomos rapidamente até o cume, escalando uma aresta vertical que parecia estar prestes a desabar.

Chorei de emoção no alto da montanha sagrada, agradecendo ao Apu Ausangate por nos deixar passar, e me permitir dar continuidade ao Projeto Mundo Andino, realizando um sonho que carregava comigo há mais de 29 anos!

Que a Fé continue nos dando forças para a realização dos nossos sonhos, levando-nos até o alto das montanhas!

Forte abraço,

Waldemar Niclevicz