Passagem pela Islândia

Minha expedição a Groenlândia começou no dia 15 de abril de 2006, com a partida do Brasil rumo a Reykjavik, via Londres.

Reykjavik é a capital da Islândia, tem aproximadamente 150 mil habitantes, metade da população de todo o país. Embora pequena, praticamente do tamanho do Estado de Santa Catarina, a Islândia é considerado um dos melhores países do mundo para se viver, mas é para quem gosta de muito frio, pois está situada logo ao sul do Círculo Polar Ártico, próxima da Latitude 66º Norte.

A Islândia é uma grande ilha vulcânica e constitui a maior parcela geográfica totalmente de origem vulcânica do mundo, tendo uma atividade geotérmica muito importante, aproveitada para a produção de eletricidade. Água quente brota por todos os lados em uma infinidade de gêiseres, essa água é aproveitada para o aquecimento das casas e também é usada para o banho, termas são comuns em todo o país. O que me impressionou muito foi a falta de vegetação, árvores são praticamente inexistentes, o que se vê são campos ondulados de lava solidificada recobertas por musgos, ou pela neve, que cobre o solo islandês por mais de seis meses ao ano.

De Reykjavik levamos 40 minutos de vôo para chegar até Isafjordour, que fica no extremo noroeste da Islândia. O ambiente pareceu ainda mais desolador, fazia um frio intenso e nevava, clima de inverno em plena primavera. Isafjordour é um porto pesqueiro de grande importância comercial, uma vez que 70% da economia da Islândia está ligada a pesca, inclusive de baleias!

De Isafjordour tínhamos que voar para a Groenlândia, na primeira tentativa não deu, o avião atravessou os 400 km do Estreito da Dinamarca, em 1h40min de vôo, mas não conseguiu pousar devido a falta de visibilidade. No dia seguinte, bem cedo, fizemos uma nova tentativa e deu certo. O Estreito da Dinamarca estava congelado a partir da sua segunda metade, nos mostrando que o inverno de fato havia se prolongado. Nós sentimos isso logo ao pisar na Groenlândia, no meio das Watkins Mountains, em um lugar completamente desabitado. Na primeira noite o termômetro apontou a mínima de -42º C, frio pra assustar até ursos polares.


De trenó pela Groenlândia

Na Groenlândia, um dos nossos maiores desafios foi superar o isolamento, ao enfrentar uma região totalmente selvagem e inabitada.

Nosso cuidado era imenso para que ninguém se machucasse, pois, embora estivéssemos a 400 km da cidade mais próxima, ela ficava do outro lado do Estreito da Dinamarca, na Islândia. Um resgate poderia levar dias, em razão da instabilidade do clima que enfrentamos durante todo o período, o que acabava tornando os vôos arriscados e até impossíveis. Aliás, o avião era a única forma de resgate, pois pelo menos uns 150 km do mar ao redor da Groenlândia ainda estavam congelados.

Aonde quer que fossemos, tínhamos que levar um rifle, para se defender dos ursos polares, que, acreditem, apenas um mês antes haviam rondado o mesmo local do nosso acampamento-base, isso a 2 mil metros de altitude, destruindo algumas barracas de outra expedição, felizmente os alpinistas estavam nos acampamentos superiores.

Em razão do frio polar, próximo dos 40º negativos, já que estávamos acima do Círculo Ártico e o inverno recém havia acabado, usamos fogareiros que usam benzina como combustível, graças ao seu alto poder calorífico. Benzina pesa mais do que o gás e muitos litros foram usados para vencer o frio e derreter uma boa quantidade de neve, somente assim podíamos beber alguma coisa ou ter um pouco de água para reidratar a nossa alimentação liofilizada.

Também não tinha nenhuma alma viva pela redondeza, tipo alguém que poderia nos ajudar a levar parte do equipamento de um lado para o outro, como carregadores.

Esse papo todo é só para dizer que tínhamos que levar uma boa quantidade de peso, principalmente quando resolvíamos mudar o acampamento de local. Nesses casos ainda conta-se barracas, sacos de dormir, panelas, fogareiros, comida e uma série de itens pessoais. Dava uns 30 kg por cabeça, um peso incômodo para ser levado na mochila, ainda mais quando se está sobre neve fresca.

A solução, que eu já tinha adotado em outros lugares, como no Mc Kinley, Patagônia e na Antártica, era usar trenós, que são extremamente práticos.

Cada um passou a puxar um pequeno trenó, e fica aqui uma boa dica, mais vale dois trenós mais leves (um para cada um), do que enfiar tudo em apenas um (para duas pessoas, e cada um puxar de vez em quando).

O trenó é preso nas costas e na cintura como se fosse uma mochila, e desliza bem na neve. No plano e em descidas, em terrenos lisos, é uma maravilha, realmente não se faz muito esforço para puxá-lo. Já nas subidas e quando o terreno é irregular, com muito “sastrugi”, espécie de ondulações congeladas, todo mundo se sente mesmo como um burro de carga.

 


A escalada do Gunnbjørns Fjeld.

Logo que chegamos a Groelândia começamos a sofrer não apenas com o frio, mas também com o mal tempo. De um total de 17 dias, tivemos apenas 3 dias de tempo realmente bom. O frio beirava os 35º/40º negativos, qualquer brisa era um tormento, parecia o fio de uma navalha cortando o rosto te tão gelado.

A quantidade de neve era bem maior do que esperávamos, o risco de avalanches estava alto, nevava quase o tempo todo, mas justamente nos dias em que fizemos os ataques às montanhas, o tempo esteve maravilhoso. Realmente algo Divino!

Tínhamos várias idéias, pretendíamos fazer algumas travessias e escalar inclusive algumas montanhas virgens, que são muitas, mas, devido às condições extremas, nos concentramos nas maiores.

Na primeira vez que o tempo pareceu nos daria uma trégua, resolvemos fazer uma tentativa ao Gunnbjørns Fjeld, que, devido a este nome difícil de pronunciar, apelidamos de GBF. Ele tem 3.693m de altitude, é a maior montanha da Groenlândia e também de todo o Ártico, já que ele se encontra no paralelo 69º N, dentro do Círculo Polar, que está a 66º N. Dali até o Pólo Norte (90º N), não existe nenhuma outra montanha mais alta.

Montamos nosso acampamento-base a 2.000m, bem no local onde um pequeno avião nos deixou, vindo da Islândia. Deveríamos montar outro acampamento mais adiante, mas o frio estava tão intenso que resolvemos arriscar um ataque ao cume do GBF dali mesmo, com a esperança de que algumas janelas de céu azul fossem o prenuncio de tempo bom.

Acordamos às 6 da manhã, frio de -34º C, ninguém quis sair dos sacos de dormir, tinha um ventinho que gelava a nossa alma, reduzindo a sensação térmica pra lá dos -45º, impossível se mexer. Quando o sol apareceu por volta das 8h30, criamos coragem, e às 9 horas iniciamos a longa jornada em um total de seis pessoas, todas munidas de esquis, com “pele de foca” (sintética) – assim o esqui não escorrega para baixo, devido as cerdas serem invertidas.

Nosso “guia”, o galês Mark Thomas, nunca tinha estado na Groenlândia antes, assim nosso grupo, que ainda estava formado pelo canadense Bill, pelo sueco Henrik, e pelos ingleses Steve e Barry, tinha pela frente um terreno completamente desconhecido. Partimos de olhos bem atentos no GPS, item pessoal obrigatório, fundamental para se orientar num ambiente tão amplo. Fomos ganhando altura, desviando grandes gretas, deslizando montanha acima com nossos esquis até os 3.450m de altitude de um colo entre o GBF e o Cone (a 3ª maior montanha da Groenlândia).

Quando chegamos neste colo já era muito tarde, por volta das 16 horas, e a turma estava muita cansada, além de tremendo de frio, pois o vento estava mais forte. Três de nossos colegas desistiram e resolveram voltar. Mark, Henrik e eu abandonamos os esquis, calçamos os grampões, nos encordamos e, passando algumas gretas traiçoeiras na saída do colo, onde Mark se afundou em uma delas até a cintura, seguimos por uma evidente crista, pisando num gelo bem duro até o cume, a 3.693m de altitude, aonde chegamos às 18h15 horas. Era o dia 22 de abril de 2006.

Mark e Henrik nem tiraram as mochilas das costas, estava muito frio, queriam logo descer, eu pedi um pouco de paciência, tirei a Bandeira do Brasil da mochila, fiz várias fotos e filmei um pouco, até a bateria da filmadora se esgotar pelo frio intenso.

Descemos rapidamente até o colo, calçamos os esquis e deslizamos até o acampamento-base, distante 18 km, aonde chegamos às 21h30. É, para baixo todo santo ajuda!


A escalada do Dome

Teve um dia que valeu por toda a expedição que fiz a Groenlândia, aquele em que chegamos ao cume do Dome (3.682m), a segunda maior montanha do Ártico.

O tempo estava horrível, o vento de gelar a alma! Como havíamos escalado o Gunnbjørns Fjeld com dificuldades, parecia que não conseguiríamos escalar nenhuma outra montanha. Mas, porque vale sempre a pena tentar, mudamos nosso acampamento 14 km mais para o sul, puxando os trenós presos na nossa cintura com tudo o que precisávamos, barraca, saco de dormir, combustível, comida, etc.

A noite foi gelada, quase não foi possível dormir, pois o vento sacudia a barraca provocando um forte barulho. Mesmo assim, acordamos às 5h da manhã, procurando não deixar se impressionar muito pelo friozinho de -29º C. Gritamos para o Bill e para o Barry, que estavam na barraca ao lado, mas eles logo nos disseram que haviam renunciado a tentativa, iam ficar por ali mesmo, e achavam que deveríamos fazer o mesmo. Bem, ficar preso dentro da barraca o dia inteiro, em um lugar lindo como a Groenlândia, de jeito nenhum!

Lá pelas 7h30, o Mark, o Henrik e eu saímos da barraca, calçamos os esquis, e começamos a andar bem rapidinho para espantar o frio. Nosso acampamento estava a 2.400m, e até um cume arredondado de 3.450m subimos com os esquis, graças às peles de foca, que deslizavam para cima, e travavam para baixo.

E o que aconteceu durante o dia foi maravilhoso, o vento foi aos poucos diminuindo, e quando chegamos ao cume arredondado de 3.450m de altitude, o vento parou completamente, algo Divino! Nenhuma nuvem no céu, montanha para todos os lados, e a pirâmide superior do Dome bem a nossa frente.

Trocamos então os esquis pelos grampões, cujas pontas afiadas foram mordendo um gelo bem duro, descemos até o colo na base da crista final, passamos um trecho perigoso com placas de neve sujeitas a avalanche, e, aos poucos, fomos ganhando altura por uma crista elegante até o cume do Dome! Era o dia 26 de abril de 2006.

Curti muito o visual do cume desta que é a segunda maior montanha do Ártico, que tem uma escalada muito mais bonita do que a do Gunnbjørns Fjeld (que tem apenas 11 metros a mais), depois descemos esquiando de volta ao acampamento.