O Projeto Leopardo das Neves
 

A idéia do “Projeto Leopardo das Neves” foi criada em 1956, quando um russo chamado Ratzik sugeriu que o título de Snezhny Bars (Leopardo das Neves) fosse concedido aos alpinistas que escalassem todas as montanhas com mais de 7 mil metros de altitude da antiga União Soviética.

Em 1967, em razão da comemoração dos 50 anos da Revolução de Outubro (revolução comunista russa de 1917, que resultou em 1922 na criação da União Soviética), o Governo Soviético, na busca de incrementar os ideais revolucionários e engrandecer o orgulho soviético, decidiu oficializar o Projeto Leopardo das Neves, aqueles que completassem o desafio receberiam uma medalha e o pomposo título de “Conquistador das Montanhas Mais Altas da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas”.

No início o desafio era composto por quatro montanhas: o Comunismo (7.495m), o Lenin (7.134m) e o Khorzenevskaya (7.105m), situados no Pamir; e o Pobeda (7.439m), situado no Tien Shan. Mais tarde foi acrescentado o Khan Tengri (7.010m), que fica no Tien Shan.

Nos primeiros anos o Khan Tengri ficou de fora, pois sua altitude aceita era de 6.995m. Por vários períodos distintos, o Pobeda também ficou de fora, pois as fronteiras estavam fechadas devido a atritos políticos com a China. De 1989 em diante o projeto se estabilizou com todas as cinco montanhas.

O primeiro alpinista a se tornar um Leopardo das Neves foi Evgeny Ivanov, de Moscou, em 1961. Cinco anos após, em 1966, outros três montanhistas se tornaram Leopardo. Em 1968 mais um. Em 1969 mais dois. E em 1970 outros cinco. Doze alpinistas, ao todo, nos anos 60.

Segundo a Federação Russa de Alpinismo, até 2008, aproximadamente 577 alpinistas haviam completado o projeto (muitos a versão de 4 montanhas, alguns a de 5). Há apenas raros ocidentais presentes na lista. A maior parte dos Leopardos das Neves são russos ou “ex-soviéticos”, os “estrangeiros” eram apenas 36, de 10 países.

Mais do que receber o título de “Leopardo das Neves”, ao organizar uma expedição à Ásia Central eu queria conhecer um pouco do Pamir e do Tien Shan, espetaculares cordilheiras que desafiam o homem desde os tempos de Gengis Khan e Marco Polo, e que ainda hoje guardam misteriosamente os seus segredos.

O Pamir, um complexo sistema de montanhas, chamado pelos persas de “teto do mundo”, é o principal nó orográfico da Ásia, de onde partem as mais altas cordilheiras da Terra (o Himalaia, o Karakorum, o Hindu Kush e o Tien Shan). A região é formada por longas cadeias de montanhas que são separadas por amplos vales, chamados de “Pamir”, e estende-se principalmente sobre os territórios do Tadjiquistão, do Quirquistão e do Cazaquistão, atingindo também o Afeganistão e o Paquistão. Reino de cabras e cavalos selvagens, o Pamir possui alguns dos maiores glaciares do mundo e ainda vales pouco conhecidos e montanhas que nunca foram escaladas.

O Tien Shan tem a fama de possuir as montanhas mais distantes, desconhecidas e sedutoras do mundo, sendo que muitas também ainda não foram escaladas. Na maior parte da região não existem estradas ou povoados, e apenas uma caminhada já é considerada uma grande aventura. O Khan Tengri, cujo nome significa “Príncipe dos Espíritos” é considerado uma das montanhas mais lindas do mundo. O ponto culminante de toda a cordilheira, o Pobeda, “Pico da Vitória”, é uma das montanhas mais difíceis e perigosas do mundo. A cordilheira do Tien Shan se impõe entre o Quirguistão e o Cazaquistão, e se prolonga pelo interior da China em direção a Mongólia.

Esta foi mais uma expedição feita sem nenhum patrocínio, graças ao dinheiro que Waldemar Niclevicz
arrecada em suas palestras que faz para as empresas.


A escalada do Lenin

Os persas chamavam o Pamir de “teto do mundo”, o Tien Shan de “montanhas celestiais”. O que mais poderia esperar dessa expedição do que estar um pouco mais perto de Deus! Sem duvida essa era uma de nossas intenções, minha e do meu amigo Irivan Gustavo Burda.

A nossa longa viagem de 54 dias começou no dia 24 de junho de 2009, partimos do Brasil em direção a Amsterdam, de onde seguimos para Alma-Ata, no Kazaquistão, então fomos por terra até Bihskek, a capital do Quirguistão, que contava na época com 900 mil habitantes.

O Quirguistão tem praticamente a mesma área do Estado do Paraná (pouco mais de 199 mil quilômetros quadrados) e aproximadamente 6 milhões de habitantes (75% da população segue o Islamismo).

O prefixo “Quirgui” vem do turco antigo que significa quarenta tribos e o sufixo “stão” significa terra, portanto, Quirguistão era a chamada “terra das quarenta tribos”.

Em razão de ficar na junção do Tien Shan com o Pamir, o Quirguistão é quase totalmente montanhoso e sujeito a graves terremotos. Mais da metade do seu território situa-se acima dos 2.500 metros de altitude, e cerca de 3% é coberto por geleiras.

Eu e o Irivan fomos até o aeroporto de Bishkek debaixo de uma forte chuva, e pegamos um vôo para Osh, a segunda maior cidade do país. O vôo foi de apenas uma hora, mas tenso em razão da turbulência. Em Osh também estava chovendo, mesmo assim passamos rapidamente em um “bazar”, compramos damascos, sucos e frutas secas e pegamos a estrada.

Osh está a 800 metros de altitude, lentamente fomos ganhando altura por uma estrada esburacada, e depois de percorrer 280 km em longas oito horas, cruzamos a barreira dos três mil metros de altitude.

Continuamos subindo, saindo da estrada principal através dos campos de altitude, já enfrentando o anoitecer. Como estávamos cada vez mais alto, o ambiente foi ficando mais frio, até um momento em que a chuva tornou-se uma neve espessa.

Seguíamos por uma estradinha de terra em precárias condições, a neve ficava cada vez mais forte, a visibilidade era no máximo de uns 50 metros, era difícil encontrar a direção certa a seguir. Quando entramos no leito de um rio, quase que o motorista não conseguiu encontrar a saída do outro lado, mas felizmente, após mais uma empinada subida, encontramos um bom platô onde se perfilavam umas duas dezenas de barracas. Por fim, havíamos chegado a 3.500m de altitude, no acampamento-base do Pico Lenin!

Na manhã seguinte, inacreditavelmente, o dia estava lindo, com um céu totalmente azul, embora todo o terreno a nossa volta estivesse coberto por um belo manto de neve.

Eu e o Irivan nos animamos, tomamos um bom café da manhã e, sem perder tempo, fomos em direção ao acampamento 1 (4.200m), chegamos perto, até os 4000m, enfrentando neve até o joelho, e depois voltamos felizes para o acampamento-base, impressionados pela imponência e beleza do Lenin. Foi só então que percebemos que todas aquelas barracas ao nosso redor estavam vazias, éramos os primeiros alpinistas da temporada a chegar, porém já contávamos com o conforto de toda a estrutura do acampamento-base da agência que havíamos contratado.

Todo o ânimo que tivemos em nossa primeira investida ao Lenin foi aos poucos sendo abalado pelas sucessivas nevadas, em doze dias tivemos dez grandes tempestades, com duração de 4 a 5 horas cada uma. Isso significava avalanches perigosas e muita neve fofa pelo caminho.

Devido ao excesso de neve foi difícil vencer os 12 km do acampamento base (3.500m) até o acampamento 1 (4.200m), como também chegar até o local do acampamento 2 (5.300m), mas pior ainda foi chegar até o local do acampamento 3 (6.100m), quando, sem nenhum exagero, nos afundamos na neve até a cintura, ajudados apenas por um outro alpinista do Quirguistão que desceu em seguida.

Mesmo com toda aquela neve, brigando com um vento que parecia querer nos jogar montanha abaixo, conseguimos montar nosso acampamento 3, com a intenção de partir para o cume exatamente à meia noite.

Eu já estava pronto, com toda a minha roupa vestida, e percebi que começou a nevar forte. Olhei para o relógio, eram exatamente 23h45. Coloquei o meu corpo para fora da barraca e fui surpreendido por uma rajada de vento que me deixou totalmente branco de neve, a visibilidade era de poucos metros. Nevou forte até as 4 da madrugada, mas o vento diminuiu só lá pelas 6hs. Durante todo esse tempo eu fiquei de plantão, rezando para que a tempestade diminuísse, mas ao amanhecer já era tarde para o nosso ataque ao cume, que deveria durar umas 18horas (ida e volta desde o acampamento 3).

Desmontamos o nosso acampamento 3 desolados e começamos a perigosa descida. Nos primeiros 300 metros novamente nos afundamos até a cintura e ficamos com medo da neve recém caída escorrer montanha abaixo nos levando.

Durante a descida houve muita neblina e nevou mais. No acampamento 1, que também poderia ser chamado de acampamento-base avançado, nos receberam com um bolo, não pelo cume, que não fizemos, mas apenas pela nossa tentativa arrojada. Tentavam nos animar, pois havíamos tomado a decisão de desistir da escalada do Lenin, e seguir o programa original para pelo menos conhecer um pouco das outras quatro montanhas do Leopardo das Neves. Isso deixou o pessoal da nossa agência e os colegas das outras equipes um tanto decepcionados, já que desde o início havíamos ganhado uma excelente reputação, pois fomos os primeiros a abrir o caminho, bem como a montar a primeira barraca em cada um dos acampamentos superiores.

Na manhã seguinte desmontamos nosso acampamento 1 e, com as mochilas bem pesadas, regressamos até o acampamento-base, prontos para abandonar definitivamente a montanha. Apesar de não termos chegado ao cume do Pico Lenin, estávamos satisfeitos com o nosso desempenho, era o dia 13 de julho.

Ninguém aceitava o nosso conformismo e insistiam para que ficássemos, principalmente os guias de montanha, também preocupados com o excesso de neve, sendo que alguns já tinham o título de “Leopardo das Neves”. Eles nos diziam que o Korzhenevskaya e o Comunismo, estando apenas a 60 km ao sul do Lenin, no Tadjisquistão, estavam sofrendo com o mesmo clima. Se seguíssemos nosso cronograma original, também seríamos os primeiros alpinistas da temporada a enfrentar aquelas montanhas, e obrigatoriamente teríamos novamente que abrir o caminho sobre uma neve em excesso.

Com tanta insistência, eu e o Irivan não resistimos, acabamos renunciando à tentativa de escalar o Korzhenevskaya e o Comunismo, e resolvemos concentrar nossos esforços para finalizar a escalada do Pico Lenin, e, se tudo desse certo, iríamos depois para o Khan Tengri e o Pobeda.

Nossa decisão redobrou a confiança que todos tinham em nós, e felizmente, no dia 19 de julho, às 14h15, o Irivan e eu levamos a bandeira brasileira a tremular pela primeira vez no alto dos 7.134m de altitude do Pico Lenin, arrancando gritos de alegria de alpinistas de várias partes do mundo que ali torciam pelo nosso sucesso. Passamos a ser chamados de “os fortes e determinados brasileiros”. Que bom deixar tão boa impressão do nosso Brasil naquela parte do mundo!

Acabamos nos tornando os segundos da temporada a chegar ao cume do Pico Lenin (um francês, no dia anterior, foi o primeiro, usando esquis). O maior problema enfrentado, além da quantidade de excessiva de neve, foi o vento gelado na crista de 7 km entre o acampamento 3 (3.100m ) e os 7.134m do cume, nesse trecho foram 8h45 para subir e 4h para descer.

O Pico Lenin está ao sul do Quirguistão, na fronteira com o Tadjiquistão. É considerado um Sete Mil acessível, desde que respeitado a época mais indicada para a escalada, entre 15 de julho e 15 de agosto. Neste período, de mil a duas mil pessoas tentam chegar ao seu amplo e alto cume, praticamente todos com a ajuda das agências especializadas em turismo de aventura.

Em um país onde raramente se encontra alguém que fale o inglês e o alfabeto é o cirílico, a ajuda dessas agências é realmente indispensável para os ocidentais. Elas é que te orientam como conseguir o visto, vão te pegar no aeroporto e te levam até a montanha, onde possuem um confortável acampamento-base (com refeitório, cozinheiras, barracas com colchonetes, banheiros, chuveiro com água quente e até uma pequena sauna). Tudo isso custa ao redor de 780 Euros por pessoa. Como no acampamento-base, no acampamento 1 (acampamento-base avançado) também é servido três refeições por dia e alojamento em barraca. Acima do acampamento 1 tudo é por sua conta. Se quiser é possível contratar carregadores ou um guia para a escalada.

A escalada em si não tem complicações técnicas e é comparada a subida do Mont Blanc ou a do Elbrus (pelas rotas normais). Usa-se corda apenas entre o acampamento 1 (4.200m) e o acampamento 2 (5.300m) devido a presença de gretas.

Acima do acampamento 2 as dificuldades aumentam, há geralmente muita neve acumulada e é grande o risco de avalanches, justo antes de se chegar ao alto do Pico Razdelnaya, onde se monta o acampamento 3 (6.100m).

Depois a rota de escalada se desenvolve basicamente por uma longa e interminável crista, de 7 km até o cume. Esta crista chega a ter até 300m de largura em alguns pontos. Existe apenas um trecho delicado chamado de “knife” (faca) a 6.500m, uma passagem de 45º, quando a crista fica bem estreita, com um vazio abaixo, onde também é aconselhável usar corda, para quem não tem muita experiência.


A escalada do Khan Tengri

“O grandioso sistema do Tien Shan se estende longo a linha do horizonte, com os seus glaciares e picos escarpados. Toda essa região se acende de ouro, laranja e vermelho ao entardecer, enquanto o Khan Tengri desponta no alto, como um gigantesco rubi, incrustado em um céu turquesa escuro.”
(M. Pogrebetskiy, 1931)

Já se passaram mais de 1.200 anos desde que o Khan Tengri, cujo nome significa “Senhor” ou “Príncipe dos Espíritos”, foi citado pela primeira vez nas crônicas chinesas. Muitos exploradores e alpinistas famosos tentaram conquistá-lo, até que em 1931 o ucraniano M. Pogrebetskiy conseguiu superar os seus 7.010 metros de altitude. Vindo pelo sul, usou cavalos, ao contrário dos alpinistas que o antecederam, e assim conseguiu resolver o grande problema de ter provisões para um longo período.

O Khan Tengri está situado no Tien Shan, a quarta maior cordilheira de montanhas do mundo, atrás apenas do Himalaia, do Karakorum e do Pamir. Esta bela cordilheira se desenvolve sem interrupções desde o Uzbequistão até a Mongólia, alcançando 2.800 km de comprimento e 800 km de largura. Originalmente era chamada de “Tengri Tag”, “as montanhas dos espíritos”, mas, como se desenvolve por cerca de 1.500Km dentro da China, foi renomeada pelos chineses de “Tien Shan”, que significa “as montanhas celestiais”.

Com tantos nomes e apelidos sugestivos, não é então de se admirar que eu tenha ficado encantado com a beleza e a imponência do Tien Shan, sendo que nenhuma montanha chamou mais a minha atenção o que o Khan Tengri.

Situado na fronteira do Kazaquistão com o Quirguistão, o Khan Tengri, com seus 7.010m de altitude, é o “7 Mil” mais ao norte da Terra (42,2º N), por isso é uma montanha muito fria, sempre açoitada por um vento gelado, mas não foi isso que mais nos impressionou, e sim a sua beleza!

Anatoli Boukreev, famoso alpinista do Kazaquistão, vitima de uma avalanche no Annapurna, em 1997, considerava o Khan Tengri a montanha mais linda do mundo, devido a elegância de suas cristas e a sua simetria. O Khan Tengri é uma pirâmide perfeita!

Chegar até o Khan Tengri exige uma boa logística. Desde a capital do Quirguistão, Bishkek, situada no lado oeste, são 460 km de carro em direção ao extremo leste do país, um total de doze horas de viagem, até o “Acampamento Internacional de Karkara”, situado a 2.200m de altitude, bem na fronteira com o Kazaquistão.

Desde Karkara, um helicóptero russo, modelo MI 8, nos levou em 40 minutos de vôo até o acampamento-base South Inylchek, que serve como ponto de partida para a escalada tanto do Khan Tengri, quanto do Pobeda. Este vôo foi magnífico, o dia estava lindo, o piloto primeiro deixou alguns alpinistas na base do Khan Tengri no lado do Kazaquistão, e depois nos levou para o lado do Quirguistão.

Desde o acampamento-base South Inylchek (4.000m), se leva de duas a três horas para chegar até o local do o acampamento 1 (4.250m), que fica na entrada de um grande desfiladeiro. É importante dormir ali e no outro dia partir de madrugada, pois o desfiladeiro é muito perigoso, com a queda diária de avalanches, seja do Chapaeva (6.371m), ou do próprio Khan Tengri (7.010m), que formam as paredes do desfiladeiro.

Eu e o Irivan já estávamos aclimatados, em razão da escalada do Lenin (7.134m), assim partimos do acampamento 1 (4.250m) e fomos direto para o acampamento 3 (5.900m), e de lá direto para o cume. Não usamos o acampamento 2 (5.200m) e nem o acampamento 4 (6.400m).

Chegamos ao cume do Khan Tengri no dia 2 de agosto de 2009, às 13h20, após 9 horas de escalada sobre a sua Crista Oeste de 1.100m de desnível. A escalada foi feita praticamente toda em rocha, 3º a 5º de dificuldade técnica, segundo a escala adotada no Brasil.

O Khan Tengri é uma montanha mítica, uma das mais lindas que já vi e uma das mais difíceis e técnicas do Tien Shan. Uma incrível pirâmide de rocha coroada pelas neves eternas!

As piores dificuldades que encontramos foram o vento gelado e o excesso de neve, já que o tempo estava instável. Felizmente nosso ataque ao cume foi bem preciso e um tanto ousado, pois nevou muito no dia anterior, e mais ainda após voltamos ao acampamento-base.


A investida ao Pobeda

No Pamir e no Tien Shan existem centenas de montanhas belíssimas e uma infinidade de possibilidades para trekkers e alpinistas, mas um desafio que merece um respeito especial é o Pobeda, a maior e mais difícil montanha da região, com 7.439m de altitude.

O Pobeda está situado bem no centro do Tien Shan, numa cadeia de montanhas chamada de Kokshaal Too (“montes severos”), onde as duras condições meteorológicas fazem com que a sua escalada seja de extrema dificuldade. As jornadas de tempo bom são raras, com intervalos de longos períodos de mau tempo, quando um vento gelado chamado de Beskunchak (“milhares de diabos”), vindo do deserto chinês de Takla Makan, torna a escalada impossível.

Eu e o Irivan chegamos até os 5.900m de altitude do Pobeda, acreditando que a previsão do tempo estava errada, pois os últimos dois dias haviam sido espetaculares, mas logo ao anoitecer começou a nevar forte. Devido ao risco de nossa barraca ser destroçada pela força do vento ou ser levada por alguma avalanche, acabamos seguindo o conselho de alguns alpinistas russos e nos refugiando em uma caverna de neve, na verdade um buraco no gelo onde mal cabiam nossos dois sacos de dormir.

Eram cerca de 4 horas da madrugada! De repente tudo começou a tremer, como se uma tropa de cavalos passasse sobre a gente! Eu acendi a lanterna e imediatamente olhei na direção dos meus pés a ponto de me assustar com a grande quantidade de blocos de gelo e neve invadindo o nosso pequeno recinto, até fechar completamente a entrada. Tentei empurrar tudo para fora, mas a massa era compacta e pesada, logo vi que estávamos em apuros, presos ali dentro, em um espaço de no máximo dois metros quadrados. Gritei para o Irivan: “Quantos minutos será que conseguiremos continuar respirando aqui dentro?”. Nem o meu amigo e nem eu sabíamos a resposta, então era importante não perder tempo.

Sai do saco de dormir e fui colocando a minha roupa e botas, que já estavam encharcadas pela neve. Não achei a pá e então comecei a cavar com a tampa da panela. Não tinha para onde jogar a neve, a não ser para cima dos nossos sacos de dormir. Eu cavava, cavava, e o que encontrava pela frente eram pedaços de gelo de até uns 30 cm de diâmetro no meio de muita neve, dificultando ainda mais a nossa saída daquela toca apertada. Que aflição!

Depois de uns dez minutos, ufa, uma escuridão no fim do túnel, a noite profunda lá fora, o bafo do vento gelado! Sem pensar pulei para fora “de peixinho”, como descreveu depois o Irivan. E lá fora aquele inferno gelado, vento insuportável, redemoinhos de neve!

Continuei cavando com a tampa da panela, sentindo já as mãos congelarem, até finalmente encontrar a nossa pá. Quando já havia livrado neve suficiente de nossa entrada para que o ar fosse renovado, fui correndo procurar a caverna de gelo de nossos vizinhos, três alpinistas do Quirguistão. Nem sinal da entrada, cavei, cavei, gritando, gritando, perguntando se estavam bem, até que no final de uns 5 minutos escutei um “Ok, estamos bem”, então voltei para finalizar o trabalho do lado “brasileiro” e só depois de quase uma hora consegui novamente me apertar entre as paredes de neve e o Irivan, para tentar novamente me esquentar em meu saco de dormir, isso já passando das 6 da manhã. E lá pelas 10 da manhã tudo outra vez, o chão tremendo, a neve invadindo o nosso pequeno buraco e eu desesperado atrás da pá. Que medo! Depois o dia acalmou, ficamos ao sol secando roupas e se esquentando. A noite seguinte foi parecida, mas as avalanches menos violentas, eu só cutuquei o Irivan e disse “é a tua vez”, e lá foi ele em busca da pá para nos livrar daquela horrível situação “claustrofóbica”.

Depois dessa segunda noite de arrepiar a alma, olhando ainda nuvens escuras rondando a montanha, e sem quase poder sair da caverna de gelo em razão do vento insuportável, decidi que abandonaríamos a tentativa de escalar o Pobeda, apoiado imediatamente pelo Irivan. Algo me dizia que era melhor não continuar. Estávamos no acampamento 3 (5.900m), teríamos ainda os acampamentos 4 (6.400m), 5 (6.900m) e 6 (7.100m) pela frente, até atingirmos os 7.439m do cume do Pobeda (embora o desnível entre os acampamentos não seja grande, a distância entre eles é enorme).

Nossos vizinhos do Quirguistão, um deles guia de montanha, começaram a subir nos dizendo: “vamos, o tempo está bom”. “Que ânimo”, pensei, enquanto minhas atenções já estavam totalmente voltadas para a nossa descida, que seria igualmente arriscada. Tínhamos um abismo para desescalar, 50º de inclinação, nenhuma marca do caminho, o vento nos cegando e muita neve querendo escorregar montanha abaixo. Fui rezando um “Pai Nosso” atrás do outro, enquanto me afundava facilmente até a cintura, às vezes parecia que eu estava nadando sobre a neve. E se o chão começasse a se deslizar nos levando em uma grande avalanche? Que medo!

Quando chegamos a um colo a 5.300m, ufa, o pior já havia passado. Continuamos então, descendo sem pressa, até o conforto do nosso acampamento-base, que estava bem longe dali, a 12 km de distância e a 4.000m de altitude, após atravessarmos um número sem fim de gretas que queriam nos engolir. Tanto eu quanto o Irivan caímos em algumas delas, felizmente sem nos machucar, pois estávamos encordados e bem atentos.

De noite desabou mais uma tempestade, o dia amanheceu cinza, o cume do Pobeda envolto por um furacão. Pelo rádio ficamos sabendo que o casal do Quirguistão e seu guia estavam descendo do acampamento 4, e que, infelizmente, uma dupla de russos estava em sérios apuros no acampamento 5. O vento simplesmente arrancou a mochila de um deles, que ficou então em uma caverna de gelo esperando o companheiro ir até o acampamento 3 em busca de mais mantimentos.

Mais uma noite escutando as rajadas de vento e os golpes de uma neve pesada, e mais uma manhã triste. Enquanto esperávamos o helicóptero, chegou a notícia que o russo que havia ficado no acampamento 5 havia sido encontrado morto, provavelmente de frio ou exaustão. Felizmente o casal do Quirguistão e seu guia chegaram bem ao acampamento-base, mas exaustos.

O helicóptero, que sempre chegava por volta das 9 horas, apareceu somente às 11h30. Sem desligar o motor em qualquer momento, primeiro nos levou até o meio do glaciar, onde desembarcamos sem saber o porquê, depois voltou até o acampamento-base, carregou as mochilas, voltou para nos resgatar no glaciar, e decolou novamente para enfrentar nuvens pesadas e rajadas de vento, numa estratégia ousada para evitar um acidente. O vôo foi super tenso em razão da turbulência, e imenso o nosso alívio quando o helicóptero finalmente pousou em Karkara, a 2.000m de altitude, de onde começamos a nossa longa volta para o Brasil, tendo a certeza que é sempre importante escutar a voz da Natureza!