Na Terra dos Kiwis
 

Comecei o ano de 2006 na terra dos “kiwis”, que é um pássaro, mas também como são apelidados os neozelandeses. Passei o Ano Novo em Queenstown, a “capital mundial” dos esportes de aventura, e depois fui para Wanaka, um lugar mais tranquilo, com apenas três mil habitantes, também a margem de um belo lago e bem mais próximo das montanhas.

Apesar de estar em pleno verão, um vento gelado trazia chuva quase todos os dias. As mudanças no tempo às vezes eram radicais, em questão de horas fazia sol, ventava forte, chovia, depois fazia sol outra vez. Como eu me encontrava no paralelo 45º, a razão de tanta instabilidade não estava muito longe, era a proximidade da Antártida.

Em um dos dias chegou a nevar, as montanhas ao redor de Wanaka, que está a 370m de altitude, ficaram branquinhas, fiquei imaginando a quantidade de neve no alto das grandes montanhas, que têm mais do que três mil metros de altitude. Eu sabia que assim era o clima na “Aeteroa”, a “terra da longa nuvem branca”, como os nativos chamam a Nova Zelândia, só esperava que aquela longa nuvem branca fosse embora por alguns dias, para que eu pudesse escalar algumas de suas lindas montanhas.

Os Alpes da Nova Zelândia estão na ilha do sul, e recebem em cheio os ventos gelados e úmidos da Antártida, que entram pelo oeste, batendo em cheio nas montanhas. São ventos muito fortes, facilmente atingem mais de 150Km/h, e ainda trazem chuva e neve, o que faz a pratica do alpinismo algo muito perigoso e, mesmo no verão, até impossível. Temia então não conseguir escalar nenhuma montanha.


A escalada do Monte Aspiring (3.027m)

O Aspiring é uma montanha muito bonita, pela sua forma piramidal, e possui uma rota normal bem acessível, por isso geralmente é a primeira e a mais assediada montanha por aqueles que pretende praticar alpinismo na Nova Zelândia. A recomendação é das mais válidas, principalmente porque assim se tem uma idéia de como se comporta o clima na região, onde viradas no tempo são repentinas, não somente com neve, mas com chuva forte e muita neblina.

Fiquei em Wanaka dois dias esperando uma oportunidade para voar até a base do Monte Aspiring, quando ventou e choveu muito. Eu e meu companheiro de escalada, o australiano Marty Beare, ficamos atentos a previsão do tempo, aliás, os neozelandeses não fazem nada sem olhar cuidadosamente a previsão do tempo. E então pegamos um helicóptero que nos deixou em um colo a 1.900m de altitude, já próximo do nosso primeiro grande objetivo, o belo Monte Aspiring. Foi um vôo nervoso, o vento estava muito forte, balançava o helicóptero, pousamos com certa insegurança sobre a neve, depois caminhamos duas horas sobre o glaciar até chegar a um refúgio chamado Colen Todd, que fica a 1.800m de altitude.

O uso do “fly in”, ou seja, a aproximação até as montanhas de avião ou helicóptero, é algo comum na Nova Zelândia, se o acesso for feito por terra, caminhando, é grande o risco de não se conseguir aproveitar as janelas de bom tempo, que geralmente são de poucos dias, em não raro, de apenas poucas horas.

Mesmo usando o helicóptero para chegar mais rápido até o refúgio, sabíamos, em razão da previsão do tempo, que teríamos muita chuva pela frente antes de uma real possibilidade de realizar a escalada. De fato, no dia seguinte nevou muito, e no outro choveu forte sem parar, algo surpreendente. O vento parecia um furacão querendo arrancar o Colen Todd da montanha, um refúgio com beliches e uma pequena cozinha. Pelas janelas víamos a chuva e a neve empapada se espatifar no vidro das janelas. Não podíamos fazer nada, o importante era ter paciência, mesmo assim era impossível não deixar de imaginar como sairíamos dali se o tempo não melhorasse. Estávamos de fato presos na montanha, junto com outros vinte alpinistas, uns se apertando contra os outros, pois teoricamente o refúgio só tem lugar para doze pessoas.

Mas enfim, como um milagre, o terceiro dia amanheceu ensolarado, com um céu azul e sem vento, exatamente como nos dizia a previsão do tempo, que nos era repassada pelos guarda parques todos os dias, pontualmente às 20 horas, pelo rádio do refugio. Neste dia aproveitamos para fazer um reconhecimento da nossa rota de escalada, a Crista Sudoeste, bem como do caminho que faríamos em nossa descida, foram seis horas de exploração pelo glaciar, felizmente as condições eram boas.

No dia seguinte, acordamos à uma hora da madrugada, às duas já estávamos fora do refúgio, com nossas pesadas mochilas nas costas. Depois de duas horas de caminhada, chegamos à base da nossa rota de escalada, fizemos ali um depósito com o que não era necessário para a escalada, marcando cuidadosamente sua posição com o GPS. Às cinco da manhã entramos na Crista Sudoeste, uma elegante linha, a mais linda do Monte Aspiring, que se eleva como a aresta de uma pirâmide rumo às alturas. O Marty e eu fomos os únicos a enfrentar esta rota de escalada, os outros alpinistas que estavam no refúgio foram pela Crista Noroeste, considerada a Rota Normal, por ser mais acessível.

Chegamos ao cume do Monte Aspiring às 8h15 da manhã, sob um vento super gelado que nos acompanhou durante toda a escalada, mal dava para ficar de pé. A parte mais difícil foram os últimos 200 metros, um corredor empinado com inclinação superando os 60º, e também a crista final que nos levou ao cume, totalmente exposta ao vazio, também muito inclinada.

Logo que começamos a descer, fomos envolvidos por uma forte neblina e cada vez mais éramos desequilibrados pelo vento, que aumentava a sua força. Descemos até o meio da Crista Noroeste, de onde pegamos um atalho pela chamada “rampa”, que acabou nos levando de volta ao nosso depósito, que só achamos no meio da neblina graças ao uso do GPS. Nessas alturas já estava chovendo, chuva fina e gelada, visibilidade de no máximo 50 metros, sobre um glaciar imenso. Enchemos novamente nossas mochilas e seguimos a nossa travessia rumo a outro refúgio, chamado French Ridge, que fica a 1.570m, um pouco abaixo da linha das neves, aonde chegamos encharcados ao final da tarde. O French Ridge é um refugio para 25 pessoas, mas estava lotado com pelo menos umas 40, em razão das férias de final de ano, mas também porque os neozelandeses são apaixonados por caminhadas e escaladas.

No outro dia, continuamos nossa descida, no meio de uma chuva ainda mais forte, sempre acompanhada por um vento gelado. Descemos até os 500m de altitude, em oito horas de uma difícil caminhada, com muita lama e vários rios perigosos para atravessar, às vezes com água gelada quase até a cintura. E por fim, chegamos até um estacionamento onde previamente havíamos deixado o nosso carro. Eu estava encharcado, sujo de lama, tremendo de frio, mas super contente, havia iniciado a minha experiência nas montanhas da Nova Zelândia em grande estilo, e sabia que o restante da viagem seria ainda mais interessante.


A escalada do Monte Cook (3.763m)

Após um merecido descanso, e tão pronto a previsão nos anunciou uma nova trégua do rigoroso clima, percorremos de carro os 250 km de Wanaka até a Mount Cook Village (720m), com a esperança de conseguir escalar a maior montanha da Nova Zelândia.

Depois de uma noite chuvosa, um helicóptero nos levou em trinta minutos até o Refúgio Plateau (2.200m). Como aconteceu no Monte Aspiring, ficamos novamente dois dias presos no refúgio esperando o vento acalmar. Chuva forte e vento que chegou a 130Km/h, segundo a previsão do tempo, que nos era passada novamente pelos guarda parques através do rádio do refúgio.

O refúgio para 33 pessoas tremia com a força do vento, fazia poucos meses que havia sido inaugurado e estava absolutamente vazio, tivemos o luxo de ficar em quartos separados e desfrutar sozinhos da bela e imensa cozinha, totalmente equipada com panelas, pratos, talheres e um belo fogão a gás.

Nosso ataque ao Monte Cook começou às 1h45 da madrugada e foi um tanto perigoso em razão do elevado número de gretas e das avalanches, riscos que estão cada vez mais presentes na Nova Zelândia devido ao aquecimento global.

Perdemos muito tempo contornando gretas imensas. Na subida por pouco não fomos atingidos por uma grande avalanche, que passou logo atrás de nós. Também na descida, no mesmo lugar, desabou uma avalanche ainda maior, pouco depois de uma hora que havíamos passados por ali, tenho a certeza que desta segunda avalanche não teríamos nenhuma chance de escapar com vida. Tudo isso aconteceu no trecho que deveria ser fácil, pois estávamos seguindo o leito de um amplo glaciar chamado “Linda”.

A parte mais difícil viria a seguir, e, embora bem mais técnica, para nós foi muito mais prazerosa. Foram três esticões de misto, inclinação de até 60º em gelo e algumas passagens verticais em rocha, que nos deixaram na afiada crista que nos levou ao cume.

Às 10h15 da manhã daquele belo dia 16 de janeiro de 2006, a Bandeira do Brasil tremulava pela primeira vez no alto do Monte Cook (3.763m), a maior montanha da Nova Zelândia. O vento gelado, que segundo a previsão era de 70 Km/h, não permitiu grandes comemorações, tiramos algumas fotos, logo rapelamos o trecho técnico, cruzamos novamente as gretas e driblamos as avalanches, para chegar de volta ao refugio Plateau às 17h15.


A escalada do Monte Tasman (3.497m)

Na Nova Zelândia, dizem que o Monte Cook (3.763m) é o rei das montanhas, e o Monte Tasman (3.497m), a rainha. Sem dúvida, uma linda rainha, mas também a montanha neozelandesa mais difícil de ser escalada.

Tínhamos dúvidas se conseguiríamos superar a face leste desta que é a segunda maior montanha da Nova Zelândia,

Ainda ninguém tinha enfrentado a face leste do Monte Tasman naquela temporada, isso nos deixava em dúvida quando a viabilidade da escalada. Era pelo mesmo lado que havíamos acabado de escalar o Monte Cook, mas Marty estava querendo descer da montanha (um longo dia de caminhada desde o refúgio) e dar a volta para o lado oeste (pelo menos cinco horas de carro, e mais um longo dia de caminhada ou vôo de helicóptero até outro refúgio).

Bem, como o tempo foi melhorando sensivelmente, meu amigo se animou e acabou escolhendo a Crista Syme para realizarmos a nossa tentativa. De fato, fomos brindados por um tempo maravilhoso, de madrugada fomos acompanhados por uma bela lua cheia, e de dia por um céu azul e praticamente sem vento.

A primeira grande dificuldade foi montar a Crista Syme, pois o glaciar em sua base estava totalmente fraturado, com gretas gigantescas, algumas com mais de cinco metros de largura, dezenas de metros de profundidade e quase incontornáveis.

Partimos do refúgio às 2h30, e depois de superar com dificuldade o labirinto formado pelas gigantescas gretas, conseguimos atingir a crista ao amanhecer por um corredor de rocha que tinha uns 80 metros de comprimento e em média 60º de inclinação. Já na crista, desfrutamos de uma escalada maravilhosa, bem exposta ao vazio, com vistas de tirar o fôlego, até próximo do alto do “Ombro”, um cume secundário que alcançamos superando uma rampa de uns 50 metros de comprimento e com cerca de 65º de inclinação.

Veio então o trecho final e mais difícil. A crista se apresentava aparentemente intransponível, mas fomos insistindo, ganhando altura devagar, ainda que bem indecisos, pois o gelo não permitia que grampos ou estacas fossem fixados com firmeza, ou seja, fomos escalando um ao lado do outro, pouco abaixo da crista, pela encosta que superava os 65º, sobre um abismo de 1.200m abaixo, sem realizar nenhuma proteção! Um escorregão seria fatal, então nos concentramos o máximo!

Quando chegamos ao cume, às 11h30 do dia 19 de janeiro de 2006, vibramos muito, e logo nos perguntamos com é que conseguiríamos descer. Tentamos primeiro a crista oposta, que é chamada de Silberhorn, por onde avançamos uns 40 metros e logo topamos com um corte vertical de gelo impossível de ser desescalado.

Resolvemos então voltar para o cume e descer pelo mesmo caminho da subida. No início deu tudo certo, mas Marty achou que seria mais rápido se fossemos até um colo próximo chamado de Engineer. Deste colo fizemos um rapel radical, com um trecho inicial de 15 metros em negativo, depois entramos em uma parede exposta às avalanches e cheia de seracs (grande blocos de gelo), foi uma descida muito nervosa, arriscada, passamos vários apuros e fomos abrigados a fazer outros dois rapeis.

Mas deu tudo certo, chegamos de volta ao refúgio às 22 horas, super cansados mas muito, muito felizes!