Tínhamos dois desafios respeitáveis nesta expedição, o Everest e o Lhotse. Infelizmente, fomos obrigados a desistir do Everest, devido a ameaça constante das avalanches. Mas acabamos conquistando o Lhotse, que apresenta uma escalada bem mais técnica e difícil.

Ver a Bandeira Brasileira tremular no alto do Lhotse nos encheu de orgulho e nos trouxe a certeza que para o homem que tem fé, não há limites nem sonhos que não possam ser realizados.


O ataque ao Everest.
 

O vento de 40 a 50 km/h estava nos congelando, mas mesmo assim não nos faltou coragem. Os sherpas e os coreanos logo foram ficando para trás, enquanto o Irivan e eu íamos gastando as nossas forças acima dos 8 mil metros. Alguém tinha que abrir o caminho.

A inclinação foi passando dos 50º, afundávamos na neve quase até a cintura e percebíamos que o terreno era instável. Pedi para que o Irivan se aproximasse para dar segurança. O vento parecia soprar ainda mais forte, nosso ritmo diminuiu e começamos a sentir a intensidade do frio.

Um de nossos sherpas pediu permissão para voltar ao Acampamento 4. Nossa frustração aumentou, ninguém tinha condições de nos ajudar, ficamos completamente decepcionados.

O Irivan tentou me encorajar, passou na minha frente, subiu uns dois metros e se viu atolado na neve até a cintura. Achando que estávamos muito à direita, comparado ao caminho que havia feito em 1991 (quando estive no Everest pela primeira vez), cogitei descer um pouco e fazer uma travessia para a esquerda, mas os sherpas (um nosso e dois dos coreanos) insistiram que era por ali mesmo. Quanta indecisão! Alguém tinha que tomar a iniciativa, então retomei a dianteira.

Reunindo todas as minhas forças, ganhando metro após metro com a ajuda de uma velha corda fixa, consegui subir uns dez metros e cheguei a um ressalto de mais ou menos 60º de inclinação. Parei para retomar o fôlego e, numa fração de segundo, senti que todo o terreno começava a escorregar. Era como se alguém estivesse puxando lentamente um tapete sob os meus pés. Na verdade, uma placa de neve de 50 cm de espessura estava deslizando para baixo. Comecei a dar passadas rápidas, levantando bem os pés, como se estivesse correndo sobre uma esteira. Por um milagre consegui saltar para o lado de cima e me fixar com o meu piolet, enquanto via aquele volume de neve despencar montanha abaixo. Que desespero! Eu estava lá preso no gelo, mas e os outros? E o meu companheiro?

Olhei para baixo e vi luzes próximas, então gritei lá de cima: “Where is Irivan?” E alguém me respondeu: “Irivan and Mingma are gone!”. Fiquei aflito, enquanto os coreanos e os seus sherpas gritavam no meio da escuridão. Eram 3 horas da madrugada, -30ºC, eu estava desesperado.

Desci rapidamente pelo pedaço de corda velha que havia usado e fui me jogando para baixo tentando achar o Irivan. Não conseguia avistar nada próximo. Muito abaixo, talvez a uns 100 metros, onde mal a minha lanterna conseguia iluminar, vi dois corpos atirados na neve, e logo fiquei aliviado ao perceber que estavam se movendo. Cheguei exausto até eles, Irivan estava calmo, estava bem, porém foi possível perceber os golpes que levou durante a queda. Seu macacão tinha sofrido vários rasgos, por onde escapavam as penas de ganso.

Infelizmente, o Mingma, nosso sherpa que não havia nos abandonado, estava descontrolado. Chorava, gritando repetidas vezes: “Eu não quero morrer”. Respiramos aliviados, pois percebemos que não havia ocorrido nada grave, e assim procuramos deixá-lo mais calmo.

Peguei a mochila do nosso carregador e, aos poucos, fomos voltando para o Acampamento 4. Olhei para aquela noite estrelada, agradeci a Deus por aquele momento e por estarmos vivos.

Em menos de uma hora estávamos de volta ao Colo Sul, entramos na barraca onde o Alir estava nos esperando e aguardamos o dia amanhecer, com a esperança da chegada do sol aliviar o frio que estávamos sentindo.

Na manhã seguinte, nossos dois sherpas nos comunicaram que estavam muito assustados e iriam descer. Nosso amigo Alir, junto com eles, iniciou sua descida para o Acampamento 2.

O Irivan e eu nos sentimos sozinhos como nunca, mas resolvemos continuar no Acampamento 4, pois sabíamos que se o vento diminuísse teríamos uma nova chance de chegar ao topo do Everest. Nesse dia chegaram ao Colo Sul três alpinistas da equipe japonesa com três sherpas. O chefe da expedição coreana também resistia no Acampamento 4 com ao seus sherpas.

Então veio a segunda noite, mais fria do que a primeira, e nossas pernas ardiam de tanto frio. Estávamos sem sacos de dormir. A alma estava gelada. A solidão estava gelada.

O barulho do vento na barraca era ensurdecedor, nem eu e nem o Irivan conseguimos dormir. A noite parecia não ter mais fim. Nem os japoneses, nem os coreanos saíram da barraca para o ataque ao cume. Quando amanheceu o dia estávamos exaustos, completamente desanimados e o vento continuava enlouquecedor. Juntamos nossos equipamentos, arrumamos nossa mochila, brigamos com o vento para desarmar a nossa barraca e começamos a descer.

A verdadeira chama não se apaga! Aquela paisagem maravilhosa vista dos 8.000m, montanhas e mais montanhas, o Himalaia aos nossos pés, começou a despertar a esperança de escalar o Lhotse. O Irivan, a princípio, ficou em dúvida, mas logo foi contagiado pela mesma emoção. Assim chegamos à conclusão de que a nossa expedição ainda não havia chegado ao fim.


A escalada do Lhotse.

A escalada do Lhotse foi uma daquelas para a gente nunca esquecer! Escalada exigente, deste a partida do nosso acampamento (7.860m), até o último metro do seu escarpado cume (8.501m).

O nosso ânimo poderia ser um dos piores, uma vez que havíamos passado duas noites no Colo Sul (8.000m), e de lá descido sem ter chegado ao cume do Everest. Realmente estávamos frustrados, mas ao escapar da ventania congelante daquelas alturas, ao cruzar o Esporão de Genebra na descida, e se abrigar do vento no Flanco do Lhotse, começamos a perceber o outro lado da vida da montanha, aquele lado protegido do vento, aquecido do sol, que nos permitia contemplar com tranquilidade o horizonte cortado por infinitas montanhas.

E assim nos abrigamos numa pequena plataforma, no Acampamento 4 do Lhotse, sentindo dentro da barraca o mormaço do sol e, ao contemplar a vista, uma serenidade Divina, que nos contagiava a cada minuto. Veio um entardecer espetacular, que deixou a montanha púrpura e silenciosa, sem nenhuma brisa. Um presente de Deus!

O Irivan e eu relaxamos, e nossos sonhos tomaram conta dos nossos pensamentos. A noite foi curta, e lá pelas 3 da manhã estávamos fora da barraca, debaixo de um céu infinitamente estrelado, dispostos a subir até o ponto mais alto do Lhotse.

Três sherpas saíram na frente, seguidos pelos seus quatro coreanos. Nós saímos cerca de meia hora depois, realmente com a intenção de nos poupar, pois havíamos nos desgastado bastante na tentativa de escalar o Everest.

Mantendo um bom ritmo, e uns 100m de distância dos coreanos, fomos seguindo com entusiasmo. Ao olhar para cima, observando as torres do cume cortando o céu estrelado, era impossível não perceber as inúmeras estrelas cadentes, um espetáculo a parte. Volta e meia eu olhava para o Everest, que estava 2 km ali do nosso lado, observando as luzes da expedição japonesa lentamente ganhar altitude, e nessas ocasiões sempre me perguntava: “Será que eles vão conseguir?”

Em cada parada que fazia para retomar o ritmo da minha respiração, me voltava para baixo, fazia um sinal com a mão, como que perguntando para o Irivan se tudo estava bem, e somente após receber uma confirmação que sim, através de outro aceno, é que voltava a subir.

Tínhamos cerca de 700m de altura a superar, divididos praticamente em duas partes. A primeira parte uma grande rampa de neve, que começava com uns 45º, e terminava pouco depois dos 8.150m, nas bases das torres de rocha, com cerca de 50º de inclinação. Até esse ponto não tivemos problemas, vários trechos estavam equipados com cordas fixas, colocadas pela expedição japonesa do Takahashi, que havia feito o cume dois dias antes. Depois o caminho seguia por um grande corredor entre as torres de rocha, até um pequeno colo que existe debaixo do cume.

Tivemos que enfrentar alguns trechos de misto, rocha e gelo, de mais de 60º de inclinação, justo na parte onde o corredor é mais estreito, com cerca de 2 metros de largura, sem dúvida foi o momento mais difícil, e sem cordas fixas. Depois o corredor ficou mais amplo, com uns 15 metros de largura, com uma inclinação constante de 50º, também sem cordas fixas. Quando estávamos nessa parte já havia amanhecido e sempre que eu olhava para baixo para cumprimentar o Irivan, era impressionante observar a altura que estávamos, qualquer escorregão poderia ser fatal.

Por fim, a uns 40 metros abaixo do cume, o corredor chegava ao fim. Lá no alto os coreanos se equilibravam como na ponta do fio de uma navalha. Ali fiquei esperando o Irivan, enquanto nossos colegas desciam felizes e iam embora.

Então chegou a nossa vez. Subimos esses últimos 40 metros, que pareciam não terminar nunca, e tinham de 60º a 70º de inclinação, e levamos um susto ao perceber o quanto agudo é o cume, realmente um pico suspenso entre o céu e a terra, onde mal cabem duas pessoas. Precipícios! Paredes verticais despencando no vazio! Uma vista deslumbrante! Montanhas e mais montanhas! Era o dia 5 de outubro de 2002, 9h30 da manhã!

Ficamos no cume do Lhotse duas horas e meia, graças ao vento que nos deu uma trégua, e ao sol que nos ajudou a suportar o frio, contemplando a beleza bem próxima do Everest, e cada vez mais ao longe a do Makalu, a do Kanchenjunga, e, do lado oposto, a do Cho Oyo e a do Shisha Pangma.

Também foi possível observar perfeitamente a expedição japonesa progredindo no Everest. Bravamente conseguiram chegar até o Cume Sul (8.751m), de onde infelizmente deram a meia volta. Ninguém conseguiu escalar o Everest naquele outono.

Nossa descida do cume do Lhotse foi nervosa, em razão da inclinação acentuada e da altura em que nos encontrávamos. Levamos duas horas para alcançar nosso Acampamento 4 (7.860m), e logo mais 3 horas para ir até o Acampamento 2 (6.500m), onde passamos a noite.

No dia seguinte, depois de uma semana de intensa atividade, e praticamente ter passado três dias acima dos 8.000 metros de altitude, estávamos de volta ao acampamento-base.

Estar novamente em um lugar seguro, longe dos ventos enfurecidos, bem abaixo do insuficiente ar rarefeito, me trazia uma imensa tranquilidade, tenho certeza que ao Irivan também.

Fomos recebidos com entusiasmo pelos nossos amigos. Alir Wellner, Marcelo Bonga e Paulo Máfia nos abraçaram emocionados, afinal, também haviam vivenciado cada segundo de nossas aflições, e tiveram cada um a sua importante parcela na grande vitória que havíamos conseguido.

No final daquela tarde, como se os deuses estivessem apenas esperando a nossa descida, nuvens escuras tomaram conta da atmosfera e começou a nevar, dando-nos a certeza que, mais uma vez, estivemos no lugar certo, na hora certa.

Namastê!