O Projeto K2
 

O K2 é a segunda maior montanha do mundo, está situada ao norte do Paquistão, num maciço de montanhas que se chama Karakorum, a porção ocidental e mais selvagem do Himalaia.

Até 1998, ano da minha primeira tentativa de escalar o K2, apenas 185 homens haviam conseguido chegar ao alto dos seus 8.611 metros de altitude e 54 haviam morrido durante as tentativas. O elevado índice de mortes comparado ao número de êxitos, leva o K2 a ter o apelido de “Montanha da Morte”, e, aliado ao clima instável, dificuldade técnica e altitude elevada, também a ser considerada a montanha mais difícil de ser escalada do mundo.

Eu fiquei sabendo da existência do K2 em 1989, pouco antes da minha segunda escalada do Aconcágua. Ao passar por Buenos Aires, encontrei uma livraria repleta de livros de alpinismo e comprei vários deles. Era, de fato, a primeira vez que eu me admiraria com histórias épicas quase inacreditáveis, onde alpinistas contavam detalhes de seus confrontos com as maiores montanhas do mundo. Foi também em dois daqueles livros que vi pela primeira vez a menção do nome do alpinista italiano Reinhold Messner, o primeiro homem a escalar o Everest sem oxigênio, em 1978, repetindo a escalada dois anos depois, novamente sem oxigênio, mas absolutamente sozinho. Foi então, entusiasmado pelos livros de Messner, que nasceu em mim o sonho de escalar o Everest, ao mesmo tempo em que também começou a surgir um profundo respeito pelo K2. Em um dos seus livros eu leria: “O K2 é um lugar esquecido e amaldiçoado por Deus”.

Após a minha escalada do Everest, em 1995, e como eu já tinha o desejo de escalar o Mc Kinley, o Vinson e o Kilimanjaro, decidi então completar os Sete Cumes do Mundo, a escalada da maior montanha de cada um dos continentes, colocando também como objetivos do mesmo projeto a escalada do Elbrus e do Carstensz. Foi justamente com a escalada do Cartensz que finalizei os Sete Cumes, em setembro de 1997, e quando também resolvi revelar o meu desejo de escalar o K2, desejo que já estava amadurecendo desde 1995, quando eu e meu amigo italiano Abele Blanc decidimos que um dia iríamos enfrentar esta grande montanha.

Naquela época, mesmo eu já tendo escalado o Everest, não tinha ainda experiência suficiente para enfrentar o K2. Foi assim que surgiu a idéia do “Projeto K2″, ou seja, como Abele queria escalar todas as 14 montanhas com mais de 8 mil metros, e como fatalmente eu precisava adquirir mais experiência em montanhas com mais de 8 mil metros, resolvemos escalar algumas dessas montanhas juntos antes de enfrentar o K2.

O Projeto K2, sem dúvida, nasceu ousado. Não apenas porque queríamos escalar o K2, mas porque também incluímos entre os objetivos a escalada do Cho Oyo (8.201m), do Shisha Pangma (8.046m) e do Makalu (8.464m). E qualquer escalada de uma montanha com mais de 8 mil metros, seja lá qual for, não é nada fácil. Estas montanhas nós pretendíamos escalar em 1998, e então enfrentar o K2 em 1999. Mas infelizmente, um problema bem previsível, falta de patrocínio, fez com que mudássemos a nossa estratégia, assim acabamos cortando o Makalu da nossa lista e antecipamos a escalada do K2 para 1998, aproveitando o convite de uma expedição italiana.

Assim o ano de 1998 tornou-se para mim inesquecível, realizei a expedição mais longa da minha vida, viajando cinco meses seguidos pelas montanhas do Nepal, Tibete e Paquistão. Foi uma expedição intensa, cheia de momentos felizes, começando com um retiro espiritual pelo Khumbu, a região nepalesa do Everest, percorrendo sozinho o caminho que leva ao alto do Gokyo Peak, de 5.500m.

A caminhada até o Gokyo é tão fascinante quanto aquela que leva ao acampamento-base do Everest, com a vantagem que após Namche Bazar o caminho segue para regiões mais selvagens, longe dos turistas que lotam os lodges, onde é mais fácil encontrar tranquilidade. Era justamente isso que eu estava buscando, tranquilidade, paz de espírito, para em breve enfrentar as montanhas com mais entusiasmo e determinação. E lá do alto do Gokyo, observando ao longe o Everest dourado pelas últimas luzes do entardecer, fiz a minha oração e adquiri uma espécie de força, como se houvesse feito uma simbiose com aquela natureza grandiosa que me rodeava.


A escalada do Shisha Pangma (8.046m)

Depois do trekking até o alto do Pico Gokyo, voltei para Kathmandu e fui recebido por Abele Blanc, que acabava de chegar da Itália com Marco Camandonna, seguimos então para o Tibete através da rodovia que liga Kathmandu a Lhasa, deixando para trás os verdejantes vales internos do Nepal para logo atingir o árido altiplano tibetano.

Quando se ingressa no Tibete não se perde apenas o verde da paisagem, se perde também o colorido das multidões, a profusão de vida pelas ruas das cidades e a alegria de viver de um povo pobre, mas feliz. Meu primeiro receio ao entrar naquela terra marcada pelo sofrimento do seu povo, foi o de encontrar os militares chineses, que inventavam a cada momento todos os motivos para tirar dos nossos bolsos os poucos dólares que restavam. Assim pagamos propina para passar na alfândega, para conseguir o jeep e o caminhão (que já haviam sido pago), bem como para pagar uma série de taxas que não existiam, mas que nos eram cobradas por militares verdes de apenas metro e meio, cheio de estrelas vermelhas nos ombros.

Quanto mais ingressávamos no Tibete, mais víamos a tristeza nos olhos dos tibetanos e mais ficávamos indignados com a violência dos chineses, que invadiram o Tibete a partir de 1949, praticamente exterminando uma das culturas mais refinadas da terra. Foi assim, relembrando a invasão chinesa, a fuga do Dalai Lama para o exílio, que cruzamos de jeep a desoladora paisagem de um verdadeiro deserto de altitude, para chegar aos 5 mil metros, no acampamento-base do Shisha Pangma, o primeiro desafio do Projeto K2.

O Shisha Pangma, com 8.046m de altitude, é a décima terceira maior montanha do mundo, situada no sul do Tibete, apenas a 5 km da fronteira com o Nepal. O início da escalada, de fato, está no acampamento-base avançado, a 27 km de distância e a 700 metros acima de onde o jeep nos deixou. Para chegar até lá, Marco, Abele e eu caminhamos 10 horas em um único dia, acompanhado pelos iaques ou bois tibetanos, que levaram toda a nossa carga.

Encontramos várias expedições no acampamento-base avançado, ingleses, espanhóis, coreanos e italianos, que esperavam o tempo melhorar para retomar a escalada. Enquanto fomos nos instalando, descobri entre os outros alpinistas dois antigos amigos, Pepe Garces da Espanha, que havia conhecido em minha primeira tentativa ao Everest, em 1991, e Cristian Kuntner da Itália, que também havia conhecido no Everest, mas em 1995. Tanto Pepe como Cristian, já haviam montado o acampamento 1, a 6.100m, mas ainda ninguém havia conseguido chegar até o local do acampamento 2, a 7.000m.

O mau tempo que estava castigando as expedições acabou nos afetando também, nos obrigando a fazer três investidas para ter condições de fazer o ataque final. Na primeira investida montamos o acampamento 1. Na segunda investida fomos surpreendidos por uma violenta tempestade e também não conseguimos superar a altitude do acampamento 1. Na terceira investida montamos o acampamento 2 e descemos novamente ao base avançado, quase sem nenhuma visibilidade. Dias antes Pepe Garces havia atingido o cume central, de 8.008m, e Cristian o cume principal, de 8.046m, tornando-se com o seu companheiro Marco Bianchi os primeiros alpinistas da temporada a escalar o verdadeiro cume do Shisha Pangma (são muitos os alpinistas que vão apenas até o cume central ou secundário, pois chegar ao cume principal é mais difícil e distante).

Abele, Marco e eu chegamos ao cume principal do Shisha Pangma no dia 14 de maio de 1998, evitando o cume secundário, seguindo uma rota de ascensão mais lógica criada anos atrás por Messner.

Para mim, a escalada do Shisha Pangma teve um significado muito especial, foi minha segunda montanha com mais de oito mil metros e aconteceu exatamente três anos após a minha escalada do Everest. Portanto, motivos para comemoração não faltavam, mas era bom lembrar que a nossa expedição estava apenas começando e que tínhamos ainda muita montanha pela frente. Assim descemos rápido da décima terceira maior montanha do mundo e seguimos diretamente para o Cho Oyo.


A escalada do Cho Oyo (8.201m)

O Cho Oyo está situado na fronteira do Tibete com o Nepal. A intenção era escalar este outro Oito Mil em duas semanas, mas, para a nossa surpresa, foram suficientes apenas 4 dias.

No dia 23 de maio de 1998, apenas 9 dias após a escalada do Shisha Pangma, Abele, Marco e eu conseguimos chegar ao alto desta que é a sexta maior montanha do mundo, para mim, algo quase inacreditável. Toda essa pressa aconteceu porque quando chegamos ao acampamento-base avançado, a 5.800m, depois de caminhar 30 km em intermináveis 12 horas, encontramos as outras expedições reclamando do mau tempo e do vento, que estava impedindo que chegassem ao cume, mas através da internet, via satélite, recebemos a previsão de bom tempo para os próximos três dias, então resolvemos aproveitar esta oportunidade, mas não foi fácil.

No primeiro dia fomos até o acampamento 1, a 6.400m; no segundo dia montamos nossa barraca no acampamento 2, a 7.000m; no terceiro dia fomos até o cume, 8.201m, e descemos até o base avançado, 5.800m, absolutamente felizes, mas muito cansados.


O primeiro confronto com o K2, em 1998

O Projeto K2 continuou com um ritmo forte, tudo acontecendo muito rápido. Em apenas três semanas Abele e eu deixamos o Tibete, voltamos para o Nepal, e logo estávamos no Paquistão, nos encontrando com nossos amigos italianos para a escalada do K2.

A chegada ao Paquistão, um país tipicamente muçulmano, é algo que choca qualquer visitante ocidental. Todos usam o mesmo tipo de roupa: os homens calças folgadas e uma espécie de guarda pó que chega até os joelhos, formando um conjunto sempre da mesma cor, geralmente marrom claro ou escuro, branco, azul ou verde. As mulheres também são obrigadas a cobrir todo o corpo, em longos vestidos que chegam a tocar o chão, todos muito folgados, e ainda levam o “parda”, uma espécie de véu que envolve os ombros e cobre toda a cabeça, deixando apenas os olhos de fora.

Homens e mulheres não são vistos juntos, aliás, raramente se vêem mulheres, que são proibidas de trabalhar em locais públicos e ficam em casa, cuidando dos filhos. Algo mais curioso é visitar uma casa de um paquistanês, provavelmente você nunca verá uma mulher. O mesmo acontece nos restaurantes e hotéis, é o homem quem faz a comida, serve a mesa, arruma as camas e limpa os quartos. O que me pareceu mais intrigante, já que sou um viajante por excelência, é a proibição de fotografar as mulheres. Bem, tudo isso é apenas um pouco do Islamismo, difícil para nós ocidentais entender, mas que tem o seu encanto nas belas mesquitas e na fé em “Alá”.

A curiosidade com certeza era grande, mas não havia tempo suficiente para entender melhor essa cultura fascinante, tínhamos que deixar Islamabad, a capital do Paquistão, e seguir rapidamente para Skardu, pois a permissão para a escalada do K2 é válida apenas por três meses. A permissão para escalar o K2 é paga para o Ministério do Turismo do Paquistão e custava 9 mil dólares para um grupo de 7 alpinistas, a partir do ano 2000 este valor subiu para 12 mil dólares.

Skardu está a 700 km ao norte de Islamabad, próximo da fronteira do Paquistão com a China. Abele e eu chegamos lá após uma cansativa viagem de ônibus que durou 23 horas. Mas, enfim, ao nos reunirmos com outros cinco alpinistas italianos que já nos esperavam, estávamos prontos para ingressar no Karakorum, as montanhas mais selvagens do mundo, que em Urdo, a língua oficial no Paquistão, quer dizer “rocha negra”.

É também da palavra Karakorum que o K2 adotou o seu nome. Em 1856, os topógrafos ingleses apontaram seus teodolitos para o norte, em direção ao Karakorum que foi apelidado de “Planeta K”. Eles observaram que duas lindas montanhas se erguiam muito acima de todas as outras. Uma dessas montanhas era o Masherbrum, o maior cume que os baltis conheciam, e foi chamada de K1, a outra recebeu o nome de K2. Dois anos depois, os topógrafos descobriram que o K2 era superado apenas pelo Everest.

Após Skardu, a próxima etapa da nossa expedição era chegar até Askole. Enfrentamos então 112 km de uma estrada de terra em péssimas condições, foram oito apreensivas horas de viagem, desafiando precipícios ameaçadores, com um comboio de 12 jeeps. Os motoristas dos jeeps, embora demonstrassem habilidade, nos deixavam preocupados, pois dirigiam muito rápido. Várias vezes chamamos a atenção para que diminuíssem a velocidade, mas após alguns minutos eles voltavam a acelerar. O que parecia inevitável acabou acontecendo. Um dos jeeps perdeu o controle, saltando abismo abaixo, parando no meio das águas do rio Braldu. Três carregadores ficaram feridos e outros dois perderam a vida. Suportamos este acidente com muita dor, mas resolvemos continuar a nossa expedição.

De Askole, a 2.900m de altitude, foram sete dias de caminhada até o acampamento-base do K2, a 5.100m. Ao total, percorremos 95 km entre as mais lindas montanhas que eu já havia visto, destacando-se as belas torres de granito, principalmente uma delas chamada “Trango Tower”. Nessa longa caminhada, contamos com a ajuda de 182 carregadores, necessários para levar nossa carga de três toneladas até a base do K2, e desfrutamos dias com um tempo espetacular e outros com tempestades de neve. Foi apenas uma etapa de nossa expedição, mas que, por si só, foi uma grande aventura. O momento mais emocionante foi justamente avistar o K2 pela primeira vez. O “Chogori” ou “a grande montanha”, como é chamado o K2 pelos nativos, surgiu prepotente entre as nuvens, carregando uma energia particular que vibrava com insistência no ar rarefeito. Sua beleza surgiu majestosa, ameaçadora, impiedosa.

A primeira tentativa de escalar o K2 foi feita em 1909, por uma expedição italiana chefiada pelo Duque de Abruzzos. Naquela oportunidade os italianos chegaram até os 6.250m de altitude da crista sudeste, que a partir de então passou a ser conhecida como Esporão dos Abruzzos. Foi por este pronunciado esporão que decidimos realizar a nossa escalada.

Nós chegamos ao acampamento-base do K2, a 5.100m, no dia 24 de junho e ali ficamos até o dia 20 de agosto, tentando montar quatro acampamentos de apoio ao longo do Esporão dos Abruzzos. A grande quantidade de neve e o mau tempo começaram a prejudicar o desempenho do nosso trabalho logo no início, exigindo muita paciência de todos. Nós só conseguimos montar o acampamento 1, a 6.050m, durante a nossa segunda investida. Logo foram necessárias mais três investidas para montar o acampamento 2, a 6.700m, e outras três para montar o acampamento 3, a 7.300m. Em uma derradeira investida, ainda conseguimos montar duas barracas a 7.700m, mas ao insistir em progredir quase todo o nosso grupo foi carregado por uma avalanche.

A tentativa de escalar o K2 em 1998 foi bem complicada, trabalhamos durante dois meses sob condições extremas, enfrentando um vento gelado, avalanches e quedas de pedras. A rota da escalada é na verdade uma gigantesca parede de 3 mil e 500 metros de altura, onde se encontra praticamente todos os níveis de escalada em rocha e em gelo, desde uma simples rampa de neve até paredes de gelo de 65 graus de inclinação, desde encostas de pedras soltas até paredes verticais de granito. Em toda a escalada, fixamos 2 mil e 500 metros de cordas, desde os 5.800 até os 7.300m de altitude, um árduo trabalho que levamos mais de um mês para finalizar. Estas cordas eram muito importantes para a nossa subida, mas mais ainda para a descida. Sem as cordas fixas, descer desde o acampamento 3, no meio de uma tempestade, seria impossível.

A decisão mais difícil, sem nenhuma dúvida, foi desistir definitivamente da escalada, mas foi uma decisão necessária. Nós já havíamos feito tudo o que podíamos durante os dois meses que havíamos permanecido na montanha e não foi por falta de técnica ou condição nossa que não havíamos conseguido finalizar a escalada com sucesso. Realmente as condições que encontramos no K2 em 1998 estavam extremas, e também nenhum alpinista de outra expedição conseguiu chegar ao cume naquela temporada.

Continua em O Projeto K2Parte DOIS


A história da escalada do K2 está relatada com detalhes por Waldemar Niclevicz
no livro “Um sonho chamado K2” , Editora Record.