Nunca vou esquecer aquele calendário de mesa de 1987, fotos lindíssimas de uma região para mim totalmente desconhecida, paredões verticais se alçando sobre a densa floresta, cachoeiras espetaculares despencando de centenas de metros, espécies endêmicas, cavernas gigantescas e cumes isolados a mais de mil metros de altura. Kukenan, Acopan, Roraima, Auyan…, eram as estrelas do reino dos “tepuyes”, e eu confesso que nem sabia o que era isso, e só estava tendo acesso àquelas fotos graças a um curso de extensão universitária de Espeleologia que acabara de fazer na UFPR.

A verdade era que não apenas eu, mas o mundo estava “descobrindo” naquela época a beleza dos tepuyes, ao serem reveladas as fotografias das novas expedições, que nesses modernos tempos já não eram compostas apenas por estudiosos e cientistas, mas pelos amantes por excelência da aventura na natureza, os espeleólogos e os montanhistas. Quer fosse o tepuy a ser explorado, havia uma referência sempre lembrada, uma cachoeira que se precipitava do alto do maior de todos os tepuyes, chamada pelos indígenas da região de Kerepacupai Vena: o Salto Angel, com 979 metros de altura, dos quais 807 metros em queda livre, simplesmente o maior paredão com inclinação negativa da Terra.

Eu podia não saber de tudo isso, mas alguns escaladores já sabiam. Os japoneses foram os primeiros a seguir o chamado da verticalidade do Kerepacupai, isso em 1979, ganharam os primeiros 500 metros de altura através da floresta vertical do ombro esquerdo, depois foram à direita seguindo uma sequência de tetos até o cume.

A segunda escalada no Salto Angel foi apenas dez anos depois, em 1989, com a repetição da via dos japoneses pelos espanhóis Adolfo Madinabeitia e Jesús Gálvez, nada mais do que um reconhecimento do local, pois a dupla voltou em março de 1990 para realizar a primeira escalada da abóboda, a parte central e mais negativa da parede, por onde realmente corre a cachoeira, o resultado foi a “Ruta Directa”, 1.150m, A4/6b.

Em 1996 foi a vez de uma equipe formada por americanos e venezuelanos, eles também ganharam metade da altura da parede pelo ombro esquerdo (lado esquerdo para quem olha a cachoeira), porém, após fugirem da vegetação, seguiram para cima, por onde hoje está muito bem equipada uma linha de rapel, onde a rocha é de boa qualidade. A via é muito bonita e é conhecida hoje por “José Luis Pereyra”, nome de um dos maiores escaladores venezuelanos, que fazia parte da equipe, e está graduada como 5.11+/J4 (“J” para “ jungle”).

Ninguém ousava entrar novamente na abóboda do Salto Angel, para muitos a escalada era considerada suicida ou impossível. Mas um inglês chamado John Arran começou a realizar sucessivas escaladas nos tepuyes, adquirindo experiência, até que, após duas tentativas frustradas (em 2002 e em 2003) conseguiu, em abril de 2005, a segunda ascensão da abóboda, a primeira totalmente em livre, seguindo com algumas variantes o traçado da rota dos espanhóis, mas com uma saída completamente diferente. Foram 19 dias de escalada, 14 noites dormindo na parede, a rota de 1.100 metros de desenvolvimento foi chamada de “Rainbow Jambaia”, ficando com o grau máximo de E7 inglês, algo como 7c+ francês, ou 8c brasileiro.

Em março do ano seguinte, 2006, foi a vez de uma equipe liderada pelo francês Arnaud Petit, campeão mundial de escalada, a enfrentar o Salto Angel. Foi a terceira ascensão da abóboda, a segunda em livre, em 16 dias de escalada e 13 noites dormindo na parede, praticamente sobre o traçado da via dos ingleses, apenas com pequenas variantes. Referindo-se a quase impossibilidade de se proteger certos lances, Arnaud Petit disse “alguns esticões são de fato aterrorizantes”, em um deles cotado em “7b+ francês hiper expo”, complementa: “se você cai, você morre”. Sua equipe definiu o Salto Angel como “o Everest dos big wall”.

Toda essa história foi ficando em minha memória, e o meu desejo de apenas visitar a grande savana venezuelana, contemplar os seus tepuyes e conhecer o Salto Angel, foi se tornando um projeto ousado de enfrentar com uma equipe brasileira o maior paredão negativo do mundo. Três anos antes da realização da expedição, fui reunindo informações mais detalhadas e fazendo contato com escaladores locais. Além de toda a dificuldade da escalada em si, percebi que a logística e a burocracia seriam grandes desafios, mas com paciência, a estratégia certa e uma boa dose de diplomacia, aos poucos tudo foi sendo superado, inclusive fui até Caracas um ano antes para certificar que tudo sairia bem.

Uma de minhas grandes preocupações era definir quem iria compor a equipe, não apenas escaladores experientes e de alto nível, mas pessoas dispostas a superarem o que poderia ser o nosso maior desafio, a convivência na parede, sob o mais duro estresse psicológico, em razão da dificuldade extrema e do perigo da escalada, pendurados durante duas semanas sobre um abismo de centenas de metros, sendo obrigados a consumir racionalmente cada grama de comida e cada gota de água.

Felizmente, deu tudo certo! Graças a um planejamento minucioso, a experiência, união e respeito entre os membros da equipe, a nossa expedição foi um sucesso. O Brasil passou a ser o primeiro país das Américas a ter uma equipe que escalou a abóboda do Salto Angel, foi a quarta vez que este paredão negativo de mil metros de altura, considerado o “big wall” mais difícil do mundo, foi superado.

O Chiquinho (José Luiz Hartmann), o Éd (Edmilson Padilha), o Sérginho (Sérgio Tartati) e o Val (Valdesir Machado), que já possuem em seus currículos escaladas como a do Fitz Roy, Cerro Torre, El Capitan e Trango Tower, foram unânimes: “foi a escalada mais difícil de nossas vidas”.

Foram 17 dias de escalada, 4 dias para equipar os primeiros 370 metros da parede, e outros 13 dias literalmente pendurados no vazio para se chegar ao alto do Auyantepuy, de onde se precipitam as águas do Salto Angel.

Montamos três acampamentos suspensos, o primeiro a 370m, o segundo a 540m, e o terceiro a 670 metros de altura da base da parede, que está a cerca de 980m de altitude, as águas da cachoeira se precipitam ainda por cerca de cem metros abaixo, à direita da base. O topo do paredão, local onde finalizamos a nossa escalada, se encontra a 1.880m de altitude.

Para a escalada e nossa sobrevivência na parede, levamos cerca de 500Kg (220 litros de água, 1.180 metros de cordas, comida para 6 pessoas para 15 dias, 2 porta ledges duplos, 3 fogareiros, 15 cartuchos de gás, 3 jogos de camalots (do 0.5 ao 6), 3 jogos de stoppers, 150 mosquetões, pítons variados, ganchos, cliffs, etc).

A escalada do Salto Angel foi feita tendo como referência os croquis das expedições anteriores (espanhola, de 1990, inglesa, de 2005, e francesa, de 2006), seguiu-se o sistema ou linha lógica que se desenvolve do lado esquerdo da cachoeira, com algumas variantes em relação às ascensões anteriores, a maior delas, que chamamos “variante brasileira” deu-se após nosso acampamento 3 da parede (chamado de acampamento 5 pelas outras expedições), quando fizemos uma travessia horizontal à direita (35m) e depois continuamos por um lindíssimo diedro, que apelidamos de “Diedro Brasileiro”, com um belo esticão de 55m, que evitou dois esticões considerados pelo francês Arnaud Petit (campeão mundial de escalada) em “7b+ hyper expo” e “7b très expo” (8c e 8b na escala brasileira). A escalada foi realizada em livre em lances de até 8a e lances em artificial em até A4, segundo o grau de dificuldade adotado no Brasil.

Na parede, tivemos a simpática companhia do Yupi (Alfredo Rangel), escalador venezuelano com muita experiência em escalada nos tepuyes, que nos deu importantes dicas de como progredir na delicada rocha do Salto Angel. Outra agradável companhia que tivemos na equipe foi a do gaúcho Orlei Junior, que ficou nos fotografando e filmando da base.

O grande problema que enfrentamos diariamente na escalada foi a rocha decomposta e abrasiva, era extremamente difícil contar com proteções confiáveis, tudo estava meio solto. Eram frequentes lances expostos, com possibilidade real de queda e proteção duvidosa ou impossível. Qualquer descuido com o atrito das cordas nos cantos afiados da rocha era potencialmente perigoso, o uso de protetores para corda foi fundamental. Nos trechos mais difíceis nossa progressão diária não passava de dois esticões de 25 ou 30 metros cada. No penúltimo dia, progredimos apenas 30 metros em um A4 aterrorizante, que contava no croqui de Arnaud Petit como um 7b+ obrigatório (8c na graduação brasileira).

Todo o esforço era recompensado pelo cenário do local, o fantástico véu do Salto Angel ao nosso lado, de dia ornado com múltiplos arco-íris, de noite flutuando na escuridão iluminado pelas estrelas e mais tarde pela lua cheia. A densa floresta lá embaixo e o visual de outros tepuyes davam ainda mais encantamento a todo aquele ambiente.

Pena que na conclusão da escalada começou a chover, o Salto Angel deve ter triplicado o seu volume de água. Às vezes mal conseguíamos ver o colega escalando logo acima, em razão da forte neblina e da cortina de água das pequenas cachoeiras que iam surgindo ao lado da queda principal. No cume descansamos um dia e também não tivemos uma boa vista, o mesmo acontecendo durante o rapel, que foi feito por uma via equipada bem mais à esquerda da cachoeira, fora da abóboda.

Mas o mau tempo não tirou a nossa alegria de ter terminado a escalada com sucesso, mesmo debaixo de uma garoa gelada o cume nos encantava com as formações rochosas esculpidas pelo vento entre a neblina, e um sem fim de pequenas flores coloridas, em especial as heliânforas, espécies endêmicas daquelas ilhas do tempo que estão isoladas no alto dos tepuyes.

Um dos momentos especiais foi quando nos reunimos debaixo de uma grande rocha, para evitar a chuva, e cada um pode falar um pouco do que significou toda a experiência que havíamos acabado de viver, era nítido o estado de felicidade e alívio em cada um de nós por tudo ter dado tão certo.

Naquele momento fizemos uma homenagem especial: dedicamos a nossa escalada em memória do nosso querido companheiro de montanha Bernardo Collares, que apenas um mês antes havia perdido a vida durante a escalada do Fitz Roy, na Patagônia argentina.

A Expedição Brasil Salto Angel foi patrocinada pelo próprio Waldemar Niclevicz, graças ao dinheiro que arrecada realizando palestras para empresas, e teve o apoio das cordas Edelweiss.