Escalada em: 05 de fevereiro de 2004.

Junto com: Renato Kalinowski e Equipe (Irivan Gustavo Burda, Marcelo Santos, e Paulo Souza).

Rota percorrida: através do Lago Leon e do colo entre o La Torre e o Fiero.

Dificuldade: AD, algo difícil.

Tempo estimado: duas a três semanas.

Época adequada: dezembro a fevereiro.

Acesso: da cidade de Puerto Montt, pela Carretera Austral, três dias de carro até a Fazenda do Sr. Juan Aldea que fica próxima a Puerto Tranquilo, um pouco acima da foz do Rio Leon no Lago General Carrera.

Aproximação: da fazenda, 4 a 5 horas de caminhada, 20 km, até o Lago Leon.

Equipamento necessário: completo de alta montanha e escalada em gelo, GPS, esquis com pele de foca ou raquetes de neve.

A Escalada:

O San Valentin é a montanha mais alta da Patagônia, com 4.058m de altitude. Alguns alpinistas o definem como uma montanha de proporções himalaianas e sua escalada tão difícil como a de uma montanha com mais de 8 mil metros. Exageros a parte, é uma montanha realmente complexa, de difícil acesso, com um dos piores climas que se pode imaginar, situada no extremo nordeste do Gelo Patagônico Norte. Este campo de gelo possui aproximadamente 100 km de comprimento e uma largura de 40 a 50 km.

No dia 29 de janeiro de 2004 chegamos às margens do Lago Leon, após quatro horas de caminhada, acompanhados por sete cavalos que levaram a nossa carga. Estávamos armados até os dentes, com comida, combustível e equipamento para permanecer 25 dias na montanha. As águas do comprido lago que está a 360m de altitude estavam movimentadas, ondas quebravam na praia de pedras. Na outra extremidade dos seus 12 km de comprimento, víamos a frente vertical de um grande glaciar. Em toda a sua extensão flutuavam os tempanos, pedaços de gelo que lentamente eram trazidos para o nosso lado pelo vento.

Certamente não conseguiríamos navegar neste dia, mas inflamos o nosso pequeno bote de 2,4m e montamos o nosso modesto motor de 3,3 HP. Ficamos escondidos atrás de uma grande pedra, vendo os cavalos se afastar do lago e fugirem do vento gelado. Lembrei da experiência que tive naquele mesmo lugar em 1994, senti novamente aquele ambiente desolador, mas pelo menos não estava chovendo.

No final da tarde as ondas diminuíram de tamanho, Irivan, Marcelo e eu saltamos dentro do bote levando ainda duas grandes mochilas, fomos lentamente fazendo a primeira travessia de 8 km até o lugar escolhido para o nosso acampamento-base, o mesmo usado pelos primeiros exploradores em 1940. Era a primeira vez que o nosso bote de borracha navegava, assim aproveitamos as águas do Lago Leon para batizá-lo de “Totora”,nome de um junco que nasce nas águas do Lago Titicaca, até hoje os nativos fazem com ele embarcações e as famosas ilhas flutuantes.

Eram 22 horas quando desembarquei, após a travessia que durou exatamente uma hora. Rapidamente Irivan e Marcelo voltaram para o outro lado, aonde chegaram já ao anoitecer.

A noite foi solitária, mas logo pela manhã chega o Totora com mais carga e mais um passageiro, o Renato. Deixamos tudo no acampamento-base que montamos a 430m de altitude e fomos buscar um caminho que nos levasse até o início do glaciar. Nossos companheiros de equipe continuaram fazendo as travessias do lago.

Renato e eu atravessamos um lindo bosque repleto de espécies selvagens da Patagônia, coihues magalhânicos, lengas, notros, nalcas, etc. Fomos encontrando traços de um velho caminho e o marcando melhor com fitas de plástico alaranjadas. Após os 900m de altitude saímos do bosque e tocamos as primeiras manchas de neve. Com o GPS fomos registrando o nosso percurso, enquanto procurávamos vestígios de possíveis caminhos de outras expedições. Acabamos chegando ao alto de uma elevação de 1.300m de altitude de onde vislumbramos todo o Glaciar Leon e o passo Cristal, um colo por onde deveríamos passar para ingressar no Gelo Patagônico. Deixamos ali nossa carga e voltamos satisfeitos ao acampamento-base, onde o Paulo, o Irivan e o Marcelo nos esperavam, após completarem com sucesso a travessia do lago.

O dia 31 de janeiro amanheceu ensolarado, hora de ganhar tempo, carregamos as mochilas ao máximo e subimos. Quando entramos no Glaciar Leon encontramos algumas pegadas e ficamos curiosos, alguém também estava por ali. Aos 1.350m de altitude, as pegadas seguiam para uma direção diferente da nossa, mesmo assim resolvemos verificar para onde iam. Acabamos encontrando um francês, um italiano e um alemão, que haviam acabado de escalar o Mocho (2.440m), feito uma tentativa frustrada no Cristal (2.745m) e desistido do San Valentin devido ao elevado número de gretas. Desaconselharam-nos totalmente a prosseguir, dizendo que o perigo de cair em gretas estava imenso, mas nos afirmaram que o colo entre o Mocho e o Cristal era um caminho muito mais seguro do que aquele que pretendíamos enfrentar, através do colo entre o Cristal e o Tronco. Era impossível ignorar aquele encontro nada ocasional, mudamos rapidamente de itinerário, chegando ao alto de uma crista, onde havia um bom platô a 1.540m de altitude, onde montamos nosso acampamento 1. Fiquei ali com o Renato. Irivan, Marcelo e Paulo voltaram a descer para o acampamento-base.

O dia 1º de fevereiro amanheceu com um tempo ainda melhor. Renato e eu escolhemos provisões para seis dias e deixamos um recado para que o Marcelo e o Irivan fizessem o mesmo e nos seguissem, ainda que com um dia de atraso. Continuamos pela afiada crista, ganhando altura rapidamente, atravessamos às vezes trechos de escalada em rocha, às vezes trechos de escalada em gelo. Quando o altímetro marcou os 2.200m de altitude, chegamos ao colo entre o Mocho e o Cristal, e vislumbramos do outro lado toda a imponência do Gelo Patagônico Norte, com os seus 100 km de extensão, parecia não ter fim. Um verdadeiro deserto de gelo rodeado por montanhas, que logo me lembrou as paisagens que havia visto durante a escalada do Vinson, na Antártida. Uma visão rara, fantástica!

A dúvida era imensa, estávamos nas margens do Gelo Patagônico, mas que direção seguir? Gretas ameaçadoras para o norte e para o oeste, a única opção aparentemente segura era para o sul, onde uma longa rampa descia rumo ao coração do Gelo Patagônico, nos afastando totalmente do nosso objetivo. Foi uma decisão difícil, mas rumamos para o sul, com a esperança de desviar as perigosas gretas e mais tarde voltar para o norte. Seguimos caminhando até às 22h30, quando paramos para acampar no meio do nada, já iluminados pela lua crescente, a 1.800m de altitude. O silêncio era absoluto, não havia nenhuma brisa de vento!

Tentamos contato pelo rádio com nossos amigos sem sucesso, então deixamos mais um bilhete colado em uma das bandeirolas de sinalização. Seguimos rumo ao noroeste, desviando gretas gigantescas, sempre unidos pela corda para evitar possíveis quedas, eu de esquis e o Renato com raquetes para neve, caso contrário nos afundaríamos na neve até os joelhos.

O dia estava espetacular, céu azul, brisa suave, quase inacreditável. Acabamos acampando a 1.460m de altitude, na base do Esporão Noroeste do La Torre (2.740m), com a esperança de o desviarmos pelo oeste e encontrar um caminho para o San Valentin. Cada metro do nosso percurso era registrado em dois GPS, um do Renato e outro meu.

De madrugada levamos um susto, alguém estava passando ao lado de nossas barracas. Que surpresa!!! Eram Irivan e Marcelo, de onde tinham surgido? Bem, vinham de um acampamento a pouco mais de 200m de onde nos encontrávamos, estavam prontos para atacar o cume do San Valentin dali mesmo. Nós havíamos estudado o glaciar de dia e falamos para eles que enfrentá-lo à noite não seria uma boa idéia, mesmo assim eles tentaram, mas logo ao amanhecer estavam de volta desiludidos, pois uma infinidade de gretas tinha impedido a progressão. Isso era uma notícia ruim para todos, se eles não tinham conseguido passar, Renato e eu também não passaríamos.

Procurei encorajar a todos a buscar um novo caminho, através do colo que existia entre o La Torre e o Fiero poderia ser uma boa opção. Mas nessas alturas o Marcelo já havia perdido as esperanças, o Irivan ainda tinha as suas dúvidas, mas também estava farto de se arriscar a cair dentro de uma das infinitas gretas (algumas com 10 metros de largura, com mais de 30 metros de profundidade!!!). Era bom reunir a turma e descansar um pouco. Fomos até uma ilhota de pedra no meio daquele deserto de gelo, que fica bem na entrada do colo entre o La Torre e o Fiero, a 1.600m de altitude. Ali montamos o nosso acampamento e estudamos a rota com o binóculo, havia várias gretas, realmente gigantescas, mas não eram muitas, valia a pena tentar.

Na manhã seguinte, dia 4 de fevereiro, Renato e eu seguimos em direção ao colo entre o La Torre e o Fiero, rumando diretamente para o norte, diretamente em direção ao San Valentin. Irivan e Marcelo ficaram no acampamento descansando e em prontidão para nos ajudar caso precisássemos. Eles não tinham feito a volta que fizemos para o sul, desde o colo entre o Mocho e o Cristal, desceram diretamente rumo ao oeste, passando momentos delicados entre as gretas, estavam estressados física e emocionalmente.

Renato e eu também nos estressamos entre as gretas, pendurados em paredes com mais de 50 graus de inclinação, vendo a poucos metros buracos no gelo que pareciam não ter fim, mas conseguimos chegar ao alto do colo entre o La Torre e o Fiero, situado a 2.400m de altitude. Vibramos de alegria ao vislumbrar do outro lado toda a imponência do San Valentin, e um caminho de 12 km até ele sem maiores obstáculos. Falamos pelo rádio com o Marcelo e o Irivan, que observaram toda a nossa subida desde o acampamento na ilhota de pedra, nos deram os parabéns, vibraram com nosso progresso e com a breve possibilidade de sucesso. Renato e eu descemos do colo cerca de 100m, logo voltamos a subir lentamente. Quando tocamos os 2.750m de altitude montamos nossa pequena barraca, dali faríamos o nosso ataque rumo ao cume da maior montanha da Patagônia.

Dia 5 de fevereiro, às quatro da manhã estávamos fora da barraca, iluminados por uma lua cheia. Nenhuma nuvem no céu, apenas uma leve brisa. Renato e eu caminhamos lado a lado, de lanternas apagadas, até chegar aos 3.200m de altitude, quando começou a amanhecer (5h30). Subimos até o colo entre o Corno del Plata (3.725m) e o San Valentin e seguimos por uma crista sempre mais empinada rumo ao nosso objetivo. Foi um dos momentos mais belos de toda a escalada, um dos amanheceres mais lindos que já vi em minha vida. O espetáculo de luzes invadindo a noite, a sombra das montanhas sobre a imensidão do Gelo Patagônico, o San Valentin cada vez mais perto. Fizemos dezenas de fotos, filmamos tudo, desfrutamos daquele momento divino sem pressa.

A caminho do cume, já acima dos 3.700m, Renato afundou dentro de uma greta. A corda que estava bem esticada sustentou com facilidade seus 95 Kg, e o susto que poderia se tornar uma tragédia se não estivéssemos atentos, serviu apenas para nos descontrair, porque caímos na gargalhada, como que comemorando com antecedência a vitória certa.

A crista, que chegou a ser bem afiada, se tornou bem ampla, mas foi novamente se estreitando até nos deparamos com um dos legítimos cogumelos de gelo, típicos dos cumes da Patagônia, formados pela força dos ventos. Tinha uns dez metros de altura, mas uma passagem com cerca de 60 graus de inclinação permitia um caminho seguro rumo ao cume do San Valentin. Cheguei lá no alto emocionado, logo se juntou a mim o meu amigo Renato para o abraço da vitória, eram 11h35, do dia 5 de fevereiro de 2004, pela primeira vez a Bandeira do Brasil tremulava no alto da maior montanha da Patagônia, estávamos a 4.058m de altitude.