O americano Nathan Heald e eu chegamos em El Chaltén no dia 7 de janeiro, e no dia seguinte já seguimos em direção a Niponino (1.000m), com a esperança de aproveitar os últimos dias da primeira janela de tempo bom da temporada. No segundo dia cruzamos o colo Standhartd (2.200m), com avalanches de gelo despencando ao nosso lado, atravessando profundas gretas, desviando jorros de água que escorriam sobre o glaciar, em razão de seguidos dias de muito calor.

No final do terceiro dia acampamos a 2.400m, sob o Colo da Esperança, no momento que uma cordada italiana e duas austríacas desciam felizes do Cume do Cerro Torre, haviam feito a escalada sem nenhuma brisa de vento. Quando eles retomaram a descida, depois das 20h, nos deixando sós na parte superior da montanha, a janela de tempo bom se fechou na nossa cara, começou a ventar e a nevar.

Nevou forte a noite toda, a ponto de sermos obrigados a sair no meio de um verdadeiro furacão para limpar a neve que ia se acumulando ao redor da barraca. O dia amanheceu e o temporal continuou, parando apenas no final da tarde, revelando um novo e cintilante manto branco sobre o Cerro Torre, que apagou qualquer rastro das cordadas anteriores. Embora havia parado de nevar, o vento continuava forte, mesmo assim fizemos a nossa vigília: meia noite, três da manhã, quatro da manhã… com aquele vento a única saída era abandonar a montanha. Tomamos café e quando saímos da barraca percebemos que, embora o vento estivesse forte, o céu estava estrelado, o que nos fez mudar de planos.

Às 5h30 começamos a escalada do Cerro Torre rumo ao Colo da Esperança, aonde chegamos tremendo de frio e ensurdecidos pelas rajadas de vento. Continuamos rumo ao Elmo, o primeiro grande obstáculo a ser enfrentado, 60m de gelo com até 90o de inclinação. O vento continuava forte, por volta dos 40km/h, temperatura de -5oC, sensação térmica perto dos -25oC. Estávamos na face oeste, sob uma gélida sombra que parecia eterna.

Deveríamos comemorar o fato de superar o Elmo, para muitos considerado o trecho mais difícil da escalada, além do mais o sol começou a despontar no alto do Torre, mas já era muito tarde, 15h. Nathan não sentia a ponta dos seus pés, nossos olhos ardiam com o vento gelado. Estávamos a 2.850m, no início do misto que nos levaria ao Headwall, 8 esticões nos separavam dos 3.102m do cume. Resolvemos descer.

Quando nos preparávamos para dormir, já perto da meia noite, em um acampamento que montamos a 1.600m, Nathan retirou as suas botas e ficou chocado ao perceber que os dedões dos pés estavam congelados. Era preciso voltar rapidamente para El Chaltén, antes que ele não tivesse condições de caminhar. Regressamos pelo Gelo Continental, via Passo Marconi (1.500m) e Piedra del Fraile, percorrendo 38Km em intermináveis dois dias. Depois de um merecido descanso e seguidos banhos de água quente, Nathan voltou para casa com congelamentos de 2o a 3o nos dedões dos pés.

Continuei em El Chaltén, com a esperança de encontrar outro parceiro para realizar uma nova investida ao Cerro Torre. Nos dias seguintes chegou o Eduardo Mazza (Formiga), um querido amigo e um dos brasileiros que mais conhece as montanhas de El Chaltén, juntos já havíamos escalado a Saint Exupéry (2.558m), que faz parte do maciço do Fitz Roy, em 2008.

Formiga logo me perguntou se eu não topava escalar o Fitz Roy, aceitei o desafio na hora, e sugeri a via “Californiana”, que envolve mais neve e gelo do que a maioria das outras vias do Fitz Roy, por isso mesmo ainda não havia sido enfrentada por brasileiros. Mesmo com toda a minha experiência em escaladas alpinas e o alto nível técnico do Formiga em escalada em rocha, tínhamos a convicção que seria um grande desafio.

Para complicar a situação, Formiga me pergunta se eu não topava tentar levar a primeira mulher brasileira ao topo do Fitz Roy, seis delas já haviam tentado sem sucesso. Sua sugestão era a mineira Branca Franco que estava passando a temporada em El Chaltén. Ela mora atualmente no Equador e escala muito bem em rocha, porém nunca tinha escalado em gelo. Fui falar com ela, procurando sentir se realmente tinha a vontade e a coragem para a empreitada, havia ficado claro que sim, o desafio estava lançado.

Na tarde de sexta-feira, dia 29 de janeiro, deixamos El Chaltén (400m) rumo a Laguna de Los Três (1.200m), onde descansamos algumas horas. Às 00h17, exatamente quando a lua minguante nascia avermelhada no horizonte, contornamos a laguna, calçamos os grampões, e seguimos apressados rumo ao Passo Superior (1.950m), aonde chegamos por volta das 3h. Continuamos pelo glaciar e em menos de duas horas estávamos buscando uma passagem para atravessar a “rimaya” (grande greta que surge na base de uma parede) para seguir rumo a Brecha de Los Italianos.

Ao superar a grande greta marginal, em um salto vertical de uns 10m, entramos em uma parede de 250m de altura, com inclinação que chegava perto dos 70o. Eu ia na frente deixando a corda bem esticada, para dar mais confiança à Branca, que vinha no meio, incentivada pelo Formiga, que vinha logo atrás. Seguimos em “ensamble” ou “à francesa” para ganhar tempo, sem parar para assegurar os trechos mais perigosos. Quando toquei a rocha no alto da parede de neve, vibrei de alegria, estávamos indo muito bem! Contornei a Punta M&M e cheguei no topo da Brecha (2.600m), eram 7h10.

Tiramos os grampões e fomos até acima da Brecha, já do lado do Fitz, a meio caminho da Silla de los Franceses (2.700m). Antes de voltar a enfrentar o gelo, fizemos água com o fogareiro, reenchemos os cantis e comemos. O sol chegou rápido revelando a beleza do Cerro Torre e, mais próximos, a imponência das paredes da Poincenot, Desmochada e da Aguja de La Silla.

Seguimos novamente pelo gelo, em travessia descendente, logo em horizontal à esquerda, acompanhando a parede Sul do Fitz Roy rumo ao Oeste. No final, um trecho de 80o representou a parte mais difícil desde o início. Protegi com grampos de gelo e cheguei até uma parada, onde pela primeira vez assegurei os dois. Depois fiz uma travessia bem exposta até entrar em um misto de 60m. De lá um lance em rocha difícil e mais um esticão de 60m em gelo e misto nos deixaram finalmente na Silla dos Americanos, o início da Californiana. Havíamos superado 1.600m de desnível, estávamos a 2.800m de altitude, eram 10h30.

Nos apertamos entre o último pedaço de gelo e a imponência do Fitz Roy, em nossa primeira parada em móvel, prontos para iniciarmos a escalada. Passei a ponta da corda para o Formiga e não demorou mais do que cinco minutos para percebermos que tínhamos um imenso problema pela frente, um vento fraco, mas bem gelado. Nossas mãos logo ficaram insensíveis, assim como os pés onde já levávamos as apertadas sapatilhas que dificultavam a circulação.

O Formiga foi abrindo o primeiro esticão com dificuldade, assoprando o ar quente dos pulmões para descongelar as pontas dos dedos que se resfriavam rapidamente nas fissuras entupidas de gelo. Estávamos na sombra, e ficaríamos ainda naquela penumbra gelada por muitas horas, devido a orientação SW da parede. Só no final da tarde, quando o sol contornasse o Fitz Roy ao norte, é que sentiríamos o seu precioso calor.

O importante era não parar, mas a superação dos primeiros esticões foi lenta. O início da escalada é uma ascensão para à esquerda, em diagonal, e nessas condições achar a linha da via é difícil. Depois do terceiro esticão foi muito mais rápido progredir, a linha da escalada é para cima, mesmo fazendo pequenas variantes, não tínhamos como nos perder.

Depois de um off-width de 6a+, fui alternando alguns esticões com o Formiga, mas minha maior preocupação era sempre consultar o croqui, para realmente não nos afastarmos muito da linha da via e não perdermos tempo. As horas passavam rápidas, fomos nos dando conta que seria impossível chegar no cume naquele dia. Nos apressávamos pelo menos para terminar a “Californiana” (400m, 10 esticões) e assim evitar passar a noite pendurado na parede.

Felizmente, quando o sol começou a se aproximar do Cerro Torre, caindo sobre o manto branco do Campo de Gelo, terminamos o último esticão da Californiana. Ainda conseguimos rapelar do outro lado, e após escalar mais 60m pela “Supercanaleta”, num pequeno espaço onde mal havia lugar para se sentar, nos preparamos para passar a noite.

Seria uma noite tranquila se não estivesse ventando. E não estava ventando muito, era um vento fraco, com algumas rajadas mais fortes, mas era um vento bem gelado. Deixei o fogareiro funcionar sem parar, fazendo sopa e chá para todos, que do meu lado suspiravam ao cochilar, cansados, devido ao esforço da escalada.

Estávamos a 3.300m de altitude, literalmente suspensos em uma minúscula plataforma, sob a 2a torre do esporão SW do Fitz Roy, observando as montanhas perderem o dourado e ganharem o purpura do crepúsculo, até a escuridão e infinitas estrelas nos envolveram. Lindo demais para descrever em palavras!

Depois de uns 30 minutos do sol se pôr, começamos a tremer de frio. Então voltei a derreter pedaços neve, preparei um chá bem quente e fiz todo mundo beber uns goles. O calor era revigorante, o corpo relaxava, e conseguíamos dormir mais um pouco. Depois a tremedeira voltava, eu novamente fazia uma bebida bem quente, e assim fomos aguentando, tremendo de frio, mas felizes, tudo estava sob controle.

Às 4h30 eu já estava derretendo neve para o café e contemplando o espetáculo do amanhecer. Praticamente não ventava, e isso foi fundamental para nos animar, pois não sabíamos ainda por quanto tempo ficaríamos na sombra.

Às 6h40, com os pés insensíveis, as mãos inchadas e semicongeladas, o Formiga retomou a escalada com movimentos rápidos para espantar o frio, esticando até o último metro as cordas de 60m, para ganharmos tempo. E deu um grito lá de cima: sol!!!!

Sai correndo para cima, atrás vinha a Branca, limpando a pedra, retirando com cuidado camalots e stoppers da rocha abrasiva do Fitz Roy. Ali mesmo, onde o Formiga recebia o calor do sol como um premio em razão de todo o seu esforço, enquanto a Branca não chegava, me adiantei uma dezena de metros para me certificar para aonde continuava a nossa escalada.

Achei uma parada onde nos reunimos e, deixando o Formiga desfrutar do calor do sol mais um pouco, fui guiando um dos esticões mais extraordinários da “Californiana+Supercanaleta”, uma travessia de 60m pelo alto de uma crista afiada, até chegar em outra bela parada equipada com cordeletes e mosquetão. Dali fizemos um rapel de 20m, e mais uma travessia fácil de 30m até o colo com a pirâmide superior do Fitz, era o final da “Californiana+Supercanaleta”. Faltava apenas cerca de uma hora de escalada fácil até o cume.

E então fomos subindo, subindo, subindo! E lá estávamos, aos 3.405m de altitude, no alto de uma das montanhas mais lindas e desejadas do mundo, chamada Chaltén ou Fitz Roy! Eram 12h30, do dia 31 de janeiro de 2016.

Desde 1986 eu sonhava em escalar o Fitz Roy! O Formiga pisava no seu cume pela segunda vez (antes havia escalado a via Afanassieff)! A Branca se tornava a primeira brasileira a finalizar a sua escalada com sucesso! Missão cumprida!

Esta expedição faz parte do Projeto Mundo Andino, que está sendo realizado sem nenhum patrocínio, com recursos provenientes da venda do livro O Brasil no Topo do Mundo e a realização de palestras para empresas.

PS.: A descida foi tensa! Rapelamos a Franco-Argentina e continuamos descendo pela traiçoeira Brecha de los Italianos, verdadeira arapuca de pedras soltas, já no início da nossa terceira noite de atividade. Nos enganamos que ao pisar no chão o esforço havia terminado, pois devido a um inesperado calor e ausência de vento, o glaciar estava mole, transformando o regresso em um verdadeiro suplício, nos afundávamos na neve até acima do joelho. Mas, ainda que muito cansados, chegamos radiantes de alegria em nosso acampamento na Laguna de Los Três, bem no momento em que o sol surgia no horizonte do dia 1o de fevereiro, completando assim 53 horas de atividades praticamente ininterruptas. Faltava apenas caminhar 11Km até El Chaltén.