Alguém se queixava de dor de cabeça, enquanto os 86 carregadores se amontoavam em cima das pedras, com a esperança de receber algum dinheiro a mais, após a desgastante caminhada de 50 km feita em quatro dias até os 4 mil metros de altitude. Estávamos ao lado de um pequeno lago, assim o vento forte soprava em nossos olhos um pouco da areia que se acumulava ao lado das águas, onde havia uma espécie de praia naquelas alturas. O sol escaldante, que nos havia torrado durante a caminhada, havia sumido e todos procuravam em suas mochilas as japonas de pena de ganso para espantar o frio. Mas aos pobres carregadores baltis, com roupas velhas e esfarrapadas, restava apenas apertarem-se uns aos outros, evitando com o calor humano que o vento os congelasse.

Não pude então me demorar, contei rapidamente quantas rúpias ainda me restavam e dividi tudo por 86. Deu 240 rúpias para cada um, exatamente 4 dólares. Com a ajuda do “sirdar”, com é chamado o chefe dos carregadores, meu inglês era traduzido para o “urdo”, assim pude agradecer o esforço daqueles bravos homens, que haviam levado em suas costas cada um 25 kg, de um total de mais de duas toneladas de comida e equipamentos necessários para a nossa expedição. E lá foram eles, felizes pela recompensa, desaparecendo montanha abaixo atrás dos flocos de neve que começavam a cair, enquanto nós brigávamos com o vento, tentando montar as barracas no meio daquela tempestade, a primeira de muitas que enfrentaríamos.

Estávamos no norte do Paquistão, no coração do Karakorum, a parte ocidental do Himalaia, considerada a cadeia de montanha mais selvagem do mundo, que abriga algumas montanhas temíveis, como o K2, e outras extremamente escarpadas, como a Trango Tower, a maior torre de granito do mundo, nosso objetivo nesta grande viagem.

Era o quarto ano consecutivo que eu visitava aquelas montanhas, mas certamente estava bem tranquilo em relação aos anos anteriores, não apenas porque agora não enfrentaria a famosa “Montanha da Morte”, mas também porque estava chefiando uma equipe formada pela elite do alpinismo brasileiro, com os cariocas Alexandre Portela e Sérgio Tartari, certamente dois dos melhores escaladores de “big wall” do Brasil, e também com os paranaenses José Luiz Hartmann, Irivan Gustavo Burda e Marcelo Santos, alpinistas que gozam de excelente reputação no cenário nacional, exímios escaladores de rocha, mas também com boa experiência em escalada em gelo.

Nossa intenção era certamente ousada, pois até então apenas 72 alpinistas em todo o mundo haviam conseguido superar os 6.251m de altitude da Trango Tower, num total de apenas 24 expedições com êxito. Também descobrimos, através de informações fornecidas pelo Ministério do Turismo do Paquistão, que nenhum latino americano havia realizado tamanha façanha, o que nos deixou ainda mais animados a superar aquele paredão vertical de 1 mil e 500 metros de altura, simplesmente o maior “big wall” que existe no mundo, mais alto do que cinco Pães de Açúcar um em cima do outro.

Escalar um “big wall”, como chamamos as grandes paredes verticais, é bem complicado. É preciso dominar técnicas específicas para ficar pendurado sobre o vazio durante vários dias seguidos. O grande problema é transportar todo o equipamento lá para cima, não apenas o material de escalada, mas também comida, água, combustível, saco de dormir, panela, enfim, tudo. Assim, para não sermos surpreendidos na Trango Tower, fizemos várias escaladas no Brasil, mas o ponto alto do nosso treinamento foi no Parque Nacional do Yosemite, o maior centro de escaladas de big wall do mundo, que fica perto de San Francisco, na Califórnia, USA.

O Yosemite, a primeira área de conservação natural dos Estados Unidos, é um verdadeiro paraíso, e não apenas para os alpinistas. Do camping selvagem a um belo hotel cinco estrelas, de uma simples caminhada aos mais famosos big walls do mundo, existem um sem fim de opções para todos os amantes da natureza.

Nós escalamos em muitos lugares no Yosemite, mas não víamos a hora de enfrentar o El Capitan, sem dúvida o mais célebre e desejado big wall do mundo, uma beleza de paredão com 900 metros de altura. Foram 5 dias pendurados sobre o vazio, para superar aquela impressionante verticalidade por uma via de escalada chamada “The Nose”. Eu tinha certo medo, não apenas de despencar daquelas alturas, ou de perder algum tipo de equipamento que escapasse das mãos abismo abaixo, mas de que o tempo voltasse a piorar e ficasse tão ruim quanto o dia da nossa chegada, quando vimos as encostas das montanhas branquinhas, coberta por uma neve fresca. Ventou forte, entraram umas nuvens suspeitas, esfriou, mas felizmente deu tempo de terminar a escalada com sucesso.

Após as escaladas no Yosemite, tivemos três semanas no Brasil, antes de partir para a Trango Tower. Tínhamos uma infinidade de coisas para arrumar, mas ainda achamos tempo para mais uma aventura impressionante, algo que jamais havia sido feito antes pelo homem e que para mim era um sonho antigo, já que eu nasci em Foz do Iguaçu: cruzar a Garganta do Diabo, pendurado apenas por uma corda, sobre as maravilhosas Cataratas do Iguaçu. “Coisa de louco”, muita gente deve ter pensado, mas foi uma das mais fantásticas experiências que já tive. Uma “tirolesa” absolutamente fantástica, com 150 metros de comprimento, deslizando por uma corda exatamente no centro da Garganta do Diabo, a 90 metros de altura daquele turbilhão de água, desde o mirante do lado argentino até um grande rochedo que existe do lado brasileiro.

Eu pensava em tudo isso que acabava de acontecer, escutando o crepitar da chuva sobre o náilon da barraca que estava no acampamento-base da Trango Tower, perguntando-me se depois de tanto planejamento, aquela natureza seria assim tão ingrata, a ponto de frustrar a realização do nosso sonho de escalar a maior torre de granito do mundo. Quando escutava o estrondo de uma ou outra avalanche, sempre acompanhado pelo sibilar das pedras que mais pareciam saraivadas de balas, eu me virava dentro do saco de dormir e até suspirava aliviado por não estar lá fora enfrentando a montanha. Mas aquela chuva que banhava as barracas no acampamento-base, a 4 mil metros de altitude, transformava-se em neve acima dos 5 mil metros, congelando as encostas verticais da Trango Tower, deixando-nos apreensivo com os dias que passavam rápidos, sempre com aquelas nuvens escuras sobre as nossas cabeças. E assim foram onze dias consecutivos de tempestades, tempo mais do que suficiente para deixar a moral da equipe abalada, ainda mais porque metade dos alpinistas sentia os fortes sintomas do “mal da montanha”, dor de cabeça falta de apetite, ânsia de vômito, falta de sono, enfim, um mal estar generalizado que desanima qualquer um.

Um belo dia, nossas preces finalmente foram atendidas pelos deuses das montanhas. Percebemos que a pressão atmosférica começou a subir, sinal que o tempo iria melhorar. Então tivemos seis dias com um tempo realmente espetacular, quando fizemos uma verdadeira corrida rumo ao cume da Trango Tower, pois aquele céu azul poderia voltar a ser açoitado pelas tempestades a qualquer momento.

A escalada do maior paredão vertical de rocha do mundo não foi nada fácil. Com os esforços da equipe reduzidos pela metade, em razão dos efeitos do ar rarefeito, restou a Marcelo Santos, Irivan Gustavo Burda e a mim, a responsabilidade de levar até suas alturas a nossa querida bandeira verde amarela. Nossos colegas que travavam uma batalha contra o mal da montanha, mesmo debilitados nos ajudaram muito, transportando equipamentos até a base da parede, enquanto progredíamos lentamente por aquela imensidão vertical de rocha. O sol batia cedo na face leste da Trango, assim às cinco da manhã já estávamos escalando, mas depois das duas da tarde uma sombra gelada nos envolvia congelando nossas mãos e pés, e fazendo tremer de frio até a nossa alma.

O maior perigo foram as pedras que vinham das alturas sem avisar, passando ao nosso lado como verdadeiros projéteis. Também os pedaços de gelo eram um perigo, pois na verdade eram como grandes pedras de vidro. Assim era importante manter-se na vertical quando as avalanches nos atingiam, oferecendo o capacete como um escudo para as pedras e envolvendo o corpo com os braços para diminuir a área de impacto dos projéteis. O repicar era grande no capacete e de vez em quando um estalo mais forte nos deixava tontos pelo choque de um pedaço maior de rocha ou gelo. Às vezes, demorávamos mais de três horas para vencermos 30 ou 40 metros de escalada, pois os sistemas de fendas e fissuras, onde entalávamos mãos e pés para progredir, estavam cheios de um gelo tão duro quanto a própria rocha. Então era preciso desfechar violentos golpes com o nosso piolet, uma espécie de picareta, para conseguirmos limpar o gelo das fendas, fixar nosso equipamento de proteção e lentamente se arrastar pela rocha molhada poucos centímetros mais acima, onde a operação era repetida mais uma vez.

Quando chegávamos a um lugar aparentemente seguro, montávamos uma reunião com a ajuda de algum grampo deixado pelas expedições anteriores, então içávamos pelas cordas, com a ajuda de polias, sacos com mais de 40 kg, onde estava o restante do nosso equipamento, além de todo o material necessário para o pernoite na parede. Esses pernoites eram desconfortáveis, pois dormíamos espremidos, os três, dentro de apenas um “porta ledge”, espécie de maca suspensa que ficava bailando sobre o vazio enquanto tentávamos relaxar. A única vantagem era a visão panorâmica, realmente formidável.

Mas, todo sentimento de contemplação ia por água abaixo quando era preciso ir ao banheiro, primeiro porque estávamos enrolados por cordas até o pescoço e abaixar as calças nos deixava um tanto vulneráveis a possíveis quedas, depois porque tínhamos que acertar a boca de um pacote de papel (biodegradável), que logo era cuidadosamente fechado até formar uma boa pelota. Esta pelota era depositada delicadamente no fundo de um reforçado tubo de PVC, que chamávamos de “shittube”, e que mais tarde era esvaziado em um buraco na base da parede.

Fomos superando todos os obstáculos, até chegar o momento em que abrimos emocionados a bandeira do Brasil no alto da Trango Tower, às 16h50m, do dia 30 de junho de 2001, Marcelo Santos, Irivan Gustavo Burda e eu, vencendo um dos maiores desafios do alpinismo mundial.

Ao contemplar a paisagem do alto da maior torre de granito do mundo, não via apenas um belíssimo mar de montanhas nos rodeando, mas sim a recompensa de três anos de planejamento, seis meses de treinamento intensivo e o contentamento de uma torcida de dezenas de milhares de brasileiros que acompanharam passo a passo a nossa expedição pela internet.