A segunda expedição ao K2, em 1999

Depois de tanto esforço e de chegar tão perto de finalizar a escalada, em 1998, sentindo no íntimo a imponência desta grande montanha, seria impossível não fazer uma nova tentativa. Abele e eu decidimos voltar ao K2 em 1999, aceitando também este desafio o espanhol Pepe Garces, que esteve presente em todos os momentos da nossa primeira tentativa, porém como membro de outra expedição.

Da mesma forma que aconteceu em 1998, a nossa estratégia para escalar o K2 incluía em 1999 a escalada de outras duas montanhas com mais de 8 mil metros, com o intuito de adaptar o organismo ao ar rarefeito em outro lugar, evitando um desgaste psicológico excessivo no K2.

Escolhemos duas montanhas ali mesmo no Karakorum, bem próximas ao K2, o Hidden Peak (8.068m) e o Gasherbrum (8.035m), respectivamente a décima primeira e a décima quarta maior montanha do mundo. Para estas duas montanhas também se juntaram a nós o italiano Cristian Kuntner e o australiano Andrew Lock, dois fortes alpinistas que já haviam escalado o K2.

Nossa segunda expedição ao K2 aconteceu, portanto, na mesma época que a primeira, entre os meses de junho e agosto, verão, estação mais indicada para se escalar no Karakorum. Novamente percorremos o mesmo caminho do ano anterior, com mais de cem carregadores, entre as fantásticas torres de granito.


A escalada do Gasherbrum (8.035m)

Em Concórdia, um importante entroncamento de glaciares a 4.700m, deixamos a visão do K2 à esquerda e ao longe, e seguimos em frente em mais um longo dia de caminhada, para chegar ao acampamento-base do Gasherbrum, o mesmo do Hidden Peak. Na verdade, estas duas grandes montanhas fazem parte de um mesmo maciço chamado de “Gasherbruns”, ao total são setes imponentes picos, sendo que dois deles ultrapassam a barreira dos 8 mil metros. O Hidden Peak é o mais alto, com 8.068m, sendo também chamado de Gasherbrum I, já o Gasherbrum, por ser o segundo mais alto, também é conhecido como Gasherbrum II.

A nossa foi a primeira expedição a chegar aos Gasherbruns, no dia 12 de junho de 1999, assim tivemos a missão de abrir o caminho até o acampamento 1. O perigo consistia em percorrer uma espécie de cascata de gelo, um glaciar repleto de gretas, completamente fraturado, onde grandes fendas surgiam no chão por todos os lados, achar um caminho neste verdadeiro labirinto de gelo não foi fácil, a progressão foi lenta e perigosa. O acampamento 1 está a 5.900m, no centro de um grande anfiteatro, rodeado por todos os Gasherbruns, por isso mesmo, é um acampamento que serve para todos eles, dali poderíamos seguir escalando tanto o Hidden Peak quanto o Gasherbrum.

Optamos primeiro pelo Gasherbrum, com uma escalada um pouco mais simples, mas com a chegada das outras expedições, preferimos nos voltar para o Hidden Peak, onde existiam apenas outros seis coreanos. Nos dias seguintes montamos o acampamento 2, a 6.500m, e entramos no chamado Corredor do Japonês, uma larga canaleta de 600m de altura, com trechos de até 65 graus de inclinação, o trecho mais difícil de toda a escalada. Nós só atingimos o topo deste corredor em nossa terceira investida, sob um vento frio e ameaças de nevascas, o que nos levou a tomar a decisão de montar nosso acampamento 3, a 7.100m, e voltar ao base. Foi o combinado entre todos, e o que fiz com o Pepe imediatamente, mas logo ao iniciarmos a descida, Abele, Cristian e Andrew mudaram de idéia, resolveram ficar no acampamento 3, para tentar finalizar a escalada no dia seguinte. As condições estavam longe de serem as ideais, o tempo estava muito instável, o vento forte e o perigo de uma grande tempestade era evidente. Andrew logo se perdeu devido à falta de visibilidade e voltou para a barraca do acampamento, Abele e Cristian prosseguiram com cuidado e lograram chegar ao cume do Hidden Peak, mas durante a descida foram envolvidos pela noite e quase não encontraram o acampamento 3.

O tempo melhorou somente após uma semana e novamente mudamos os planos, decidimos voltar nossos esforços mais uma vez para o Gasherbrum, enquanto esperávamos uma melhora nas condições da neve do Hidden Peak. Assim, reunindo esforços com as outras expedições, conseguimos chegar ao alto dos 8.035m de altitude do Gasherbrum, no dia 10 de julho. A escalada desta montanha, que em Urdo significa “Montanha da Luz”, foi relativamente tranquila, mas logo após a chegada ao cume, uma grande tempestade nos envolveu, começou a nevar forte e a fazer muito frio. Chegamos de volta aos 7 mil metros do acampamento cansados, e a nevasca continuou por toda a noite. Quase não dormimos, preocupados com o restante da descida e com a possibilidade de alguma avalanche cair sobre a nossa barraca. No dia seguinte o acampamento estava sob um manto de 30cm de neve, açoitado por rajadas de vento entre 50 e 60Km/h. O pior era a falta de visibilidade, não conseguíamos ver nada além dos 10 metros, mas era preciso descer, pois aquela tempestade poderia durar vários dias.

A escalada do Gasherbrum me deixou extremamente feliz e satisfeito, afinal havia escalado minha quarta montanha com mais de 8 mil metros de altitude e me sentia preparado para seguir ao K2. Resolvi então desistir da escalada do Hidden Peak, preferindo reservar minhas energias para cumprir o grande objetivo da expedição. Assim me adiantei com o Abele rumo à base do K2, apenas a dois dias de caminhada da base do Gasherbrum, enquanto Pepe tentava finalizar a escalada do Hidden Peak com o australiano Andrew.


De volta aos pés do K2, 1999

Chegamos à base do K2 e recebemos as piores notícias que podíamos imaginar. Encontramos todos desolados com o péssimo tempo e com a grande quantidade de neve acima dos 7 mil metros. Além do mais, apenas dois dias antes, um acidente fatal: uma pedra havia acertado as costas de um romeno em plena escalada. Esta morte abalou a todos e serviu de motivo para desistência de muitos.

Entre os alpinistas estava Hans Kamerlander, famoso alpinista italiano, que já havia escalado 12 das 14 montanhas do mundo com mais de 8 mil metros. Dias atrás ele havia chegado até os 8.300m, dizendo ser impossível continuar, pois a neve chegava até a sua cintura. A desistência deste grande alpinista convenceu a maioria também a desistir, inclusive o meu amigo e parceiro de todo o Projeto K2, o italiano Abele Blanc. Fiquei surpreso com os acontecimentos, mas com a chegada do Pepe a base do K2 (depois de sua escalada com sucesso do Hidden Peak), resolvi resistir mais um pouco, com a esperança que o tempo pudesse melhorar nos dias seguintes.

Foi mais uma inútil espera, a neve continuou a cair forte e após dez dias eu e o Pepe também resolvemos voltar para casa. Pelo segundo ano consecutivo, ninguém conseguiu escalar o K2.


A tão esperada conquista do K2, em 2000

A estratégia para a escalada do K2 em 2000 foi diferente. Eu estava satisfeito com minha experiência em outras montanhas com mais de 8 mil metros e já me julgava perfeitamente preparado para ir direto ao K2. Além do mais, acreditava como nunca nas palavras do meu amigo espanhol Pepe Garces:

“Esta montanha estará aqui nos esperando e, com certeza, algum dia, não muito longe, cederá ao poder da nossa força, da nossa técnica e, sobretudo, da nossa mente. Que assim seja, e assim será.”

E assim foi, acabei trazendo para o Brasil uma das mais raras vitórias que se pode atingir no alpinismo mundial, me tornando a 175ª pessoa a conseguir esta proeza.

Enfrentei pela terceira vez o K2, com os alpinistas italianos Abele Blanc e Marco Camandona. Passamos novamente por Islamabad, capital do Paquistão e depois seguimos para Skardu, norte do país, onde contratamos 142 carregadores e finalizamos os últimos preparativos. Mais uma vez fizemos a perigosa viagem de Jeep até Askole (3.000m), onde iniciamos a caminhada de 95 km para chegar até o acampamento-base do K2 (5.100m), trecho que percorremos em 8 dias.

Chegamos ao acampamento-base no dia 16 de junho e logo no dia 18 montamos nosso acampamento 1 (6.050) e no dia 19 o acampamento 2 (6.700m), aproveitando as excelentes condições do tempo daquela que prometia ser uma boa temporada para a escalada. De fato, o tempo realmente estava ajudando, tanto que no dia 26 de junho, uma expedição coreana que já havia chegado um mês antes no K2, conseguiu levar oito de seus participantes até o ponto mais alto do K2 (sete deles usando garrafas de oxigênio), eram os primeiros alpinistas, após três anos, a lograrem êxito. A nossa rota de escalada era outra, a Crista Sudeste ou Esporão dos Abruzzos (os coreanos escalaram a Crista Sul-Sudeste ou Tomo Cesen, praticamente com o mesmo grau de dificuldade, porém mais curta, e mais exposta a avalanches).

Infelizmente, depois do êxito dos coreanos, enfrentamos 28 dias consecutivos de mau tempo. Durante esse período realizamos cinco investidas às altitudes superiores, mas não conseguimos ir além dos 7 mil metros. O mau tempo começou a causar desistências entre os alpinistas das outras expedições, sendo novamente muito sentida a do italiano Hans Kammerlander. Finalmente, no dia 25 de julho, chegou via internet, através do satélite, a notícia que nos próximos quatro dias haveria uma “ligeira melhora no tempo”. A previsão vinha de um experiente meteorologista espanhol chamado Dani Ramirez, com o qual eu me comunicava via satélite diariamente.

Assim, no dia 26 de julho, parti do acampamento-base com dois carregadores, seguindo direto para o acampamento 2 (6.700m), na ânsia de aproveitar o bom tempo. Era o início da sétima investida, que começou com muitos problemas. Logo no início, sem que percebêssemos, fomos envolvidos por uma avalanche e soterrados pela neve até a cintura.

No dia 27, enquanto me preparava para continuar a escalada, Abele e Marco partiram do acampamento-base com outros dois carregadores, com o plano de ir direto do base até o local do acampamento 3 (7.450m). Quando já estávamos todos reunidos (3 alpinistas e 4 carregadores), a 7 mil metros, aconteceu o segundo problema da subida: uma pedra, caindo das alturas, atingiu com violência o capacete de um dos carregadores. Tomamos a decisão de que o carregador ferido seria descido por dois de seus colegas. A expedição, desta maneira, foi obrigada a prosseguir desfalcada da metade de seus mantimentos, inclusive abandonamos as garrafas de oxigênio, pois as mochilas estavam muito pesadas e sem espaço para mais nada. Continuamos levando montanha acima apenas o essencial: quatro barracas, dois sacos de dormir, dois fogareiros, gás, comida, roupa, uma corda de 50m. Deixamos a 7 mil metros: 150m de cordas, três garrafas de oxigênio, três máscaras e reguladores, comida, gás, estacas de neve, grampos de gelo e o meu saco de dormir.

Acompanhavam-nos o equatoriano Ivan Vallejo e o inglês Fabrizio Zangrilli, membros de uma expedição internacional, que procuraram nos tranquilizar dizendo que poderíamos usar uma das três barracas que eles já haviam montado a 7.300m, mas quando chegamos lá não encontramos nenhuma barraca, nenhum vestígio do acampamento, tudo havia sido levado por uma avalanche. Abele, Marco e eu montamos nosso acampamento 150m acima, a 7.450m, local protegido das avalanches que já havíamos usado em 1998.

No dia 28, o tempo amanheceu espetacular! Fora das cordas fixas, sobre um terreno aparentemente virgem, sem nenhuma pegada, continuamos ganhando altitude até os 8 mil metros, onde montamos o acampamento 4. Absolutamente animados com as condições favoráveis, descansamos apenas algumas horas na pequena barraca que estava sobre o “ombro”, uma grande plataforma suspensa a 8 mil metros.

Retomei a escalada às 23 horas, sob a escuridão de uma noite de lua nova, acompanhado por Meherban Shah, o único dos quatro carregadores que resistia até o final, mas por pouco tempo. O paquistanês, que já havia ido até o topo do K2 em 1996, não suportou o frio dos 30 graus negativos e voltou para o acampamento 4. Continuei sozinho por cerca de uma hora, até que Abele e Marco me alcançaram, já próximo dos 8.300m.

Eram 4h30m da manhã, os primeiros raios do sol tocavam o alto da montanha mais difícil de escalar do mundo, nos aquecendo no centro do “pescoço da garrafa” (grande corredor de inclinação acentuada, 50 graus). Imediatamente acima um gigantesco “serac”, um muro de gelo cristal esverdeado de mais de 40 metros de altura, ameaçava despedaçar a qualquer momento sobre as nossas cabeças.

A escalada seguiu na vertical até Abele, Marco e eu tocarmos aquele gelo duríssimo, deste ponto iniciamos a “travessia do japonês”, sempre para a esquerda, seguindo por uma rampa com trechos de 60 graus de inclinação e cerca de 20 metros de largura, que se espremia entre o muro negativo de gelo e um abismo à esquerda. Neste trecho da escalada, mais de 30 alpinistas já haviam perdido a vida, a maioria na descida.

Afundando às vezes na neve até a cintura, eu e meus amigos italianos chegamos ao final da travessia, livrando-se do ameaçador serac muito tarde, às 15h00, e ainda estávamos a 8.400m. Dali, pela primeira vez, vimos o verdadeiro cume do K2, que surgia ainda muito, muito longe, ao fundo da paisagem. O tempo estava perfeito, céu azul e ensolarado, sem vento, assim tomamos a decisão de continuar. A dificuldade técnica havia diminuído e nos separava do cume uma rampa contínua, de 40 a 45 graus de inclinação, mas a neve profunda, onde nos afundávamos até o joelho, fazia a progressão lenta e extremamente cansativa, pois não estávamos usando garrafas de oxigênio. O ar rarefeito, apenas 30% do existente ao nível do mar, causava seus efeitos, eu sentia-me envolvido por uma leve tontura e tinha em meu rosto e nas extremidades uma sensação de calor e formigamento.

Mas, de repente, recobrei totalmente a minha consciência, abraçando com entusiasmo meu amigo italiano Abele Blanc, parceiro do Projeto K2 desde o início, deixando escapar lágrimas emocionadas no alto da segunda maior montanha do mundo. Conseguíamos, após três anos de tentativas, escalar os 8.611m de altitude do K2, o “Chogori”, “a montanha das montanhas”, eram 18h30m do dia 29 de julho.

Marco, ao chegar ao cume, deu meia volta imediatamente e iniciou a sua descida, pois estava exausto, com muito frio e preocupado com a noite que se aproximava. Abele e eu fizemos algumas fotos e filmamos a bela paisagem, observando o pôr do sol mais lindo de nossas vidas. Após meia hora começamos a descer juntos, o mais rápido possível. Mesmo assim, era preciso parar a cada 10 ou 20 metros, para recuperar a respiração e os batimentos cardíacos, em razão da falta de oxigênio.

A noite não demorou a chegar, tornando a descida mais lenta e perigosa. Escuridão total, de noite de lua nova. Apenas Abele estava com a sua lanterna e iluminava a encosta da montanha para que eu pudesse descer com segurança. Eu havia cometido um grande erro, que quase custou a minha vida: logo ao amanhecer, durante a subida, como estava sem mochila, eu havia deixado a minha lanterna pendurada num grampo a 8.300m, pois não imaginava que a noite me surpreenderia antes de eu conseguir voltar a este ponto.

A partir dos 8.400m, onde a inclinação do K2 se acentuava para os 60 graus e a descida tornava-se uma verdadeira desescalada, ficou impossível que eu e Abele continuássemos juntos. Quando Abele se distanciou uns 15 metros para baixo, fiquei praticamente no escuro, sem condição de dar o próximo passo com segurança. Tomei então uma decisão delicada, resolvi passar a noite ali mesmo, para retomar a descida ao amanhecer. Abele me chamava, querendo que eu continuasse, mas cada vez se afastava mais. Eu acabei colocando minhas pernas dentro de um buraco no gelo e fiquei ali sentado, a 8.400m de altitude, a 30 graus negativos, passando a noite mais fria e os piores momentos de minha vida até hoje.

Felizmente a noite estava calma, sem vento. Evitando dormir, esperei impacientemente pelo amanhecer, observando as luzes que vinham do acampamento 4 (8.000m). Gritei, pedindo ajuda diversas vezes, mas meus insistentes pedidos não foram ouvidos por ninguém.

Às 4h30 começou a amanhecer e eu me desentalei daquela greta para reiniciar a descida. Acabei chegando ao acampamento 4 às 7 horas da manhã, surpreendendo meus amigos. Abele confessou que ele acreditava estar vendo um fantasma entrar na barraca, quase não acreditava que eu havia sobrevivido!

Mesmo eu passando a noite a 8.400m sem nenhuma proteção, quem mais sofreu com a descida foi o Marco Camandona, que apresentava congelamento nos dedos das mãos e se demonstrava exausto. Nós três recomeçamos a descida por volta do meio dia, preocupados com o tempo que apresentava sinais de mudança. Chegamos com dificuldade ao acampamento 3 (7.450m) devido a uma forte neblina, onde passamos a noite. No dia seguinte, 31 de julho, enfrentando os ventos de uma nevasca, descemos até o acampamento-base (5.100m).

No dia 4 de agosto, num esforço de levar o Marco urgente para um hospital, para que seus dedos congelados fossem devidamente examinados, foi realizado um resgate por helicóptero até a cidade de Skardu. No dia 5 o Marco voou para a capital Islamabad e no dia 6 chegou à Itália. Infelizmente os médicos comprovaram que a necrose em cinco de seus dedos era irreversível, sendo necessário amputar a primeira falange de cada um deles.

Eu, que havia acompanhado Marco até Skardu, esperei ali Abele, que veio por terra com os carregadores e todos os nossos equipamentos. Uma semana depois cheguei ao Brasil, após 75 dias de viagem e ter passado os dias mais felizes e também os mais sofridos da minha vida.


A história da escalada do K2 está relatada com detalhes por Waldemar Niclevicz
no livro “Um sonho chamado K2”, Editora Record.